Rodrigo Andrade: um olhar em retrospecto

Michael Asbury

 

Para esta exposição retrospectiva, Rodrigo Andrade e a equipe curatorial da Pinacoteca do Estado de São Paulo discutiram, a princípio, a instalação de uma obra em um bar nos Campos Elíseos, bairro que circunda o museu. A proposta procurava “remontar” uma exposição de 2001, quando várias pinturas foram instaladas em um boteco local chamado Lanches Alvorada [p.21]. Naquela ocasião, Andrade, após um longo processo de negociação, persuadiu o dono do estabelecimento a permitir que uma série de monocromos fossem “engessados” diretamente nas paredes do bar. As obras foram exibidas ao lado de uma confusão de decorações e parafernálias típicas de botecos: arranjos com garrafas de cachaça de qualidade duvidosa, uma televisão pendurada na parede, pôsteres promocionais de cerveja, listas de preços, cartazes alertando para a inutilidade de pedidos de vendas adas e um aviso escrito à mão avisando aos clientes que não tocassem na tinta fresca (uma referência às estranhas pinturas adicionadas ao décor).

A ideia parecia simples: colocar arte em um cenário da vida real. O que parecia discrepante era o tipo de arte proposta para realizar tal tarefa: campos monocromáticos de cor apresentados em camadas únicas e grossas de tinta a óleo que possuíam uma massa substancial.

Historicamente, o impulso vanguardista de integrar a arte à vida afetou de maneira radical a forma que a obra de arte assumiu. Em tais circunstâncias, a necessidade de se comunicar com o público era muitas vezes a questão central, tanto por meio do desejo de chocar, com slogans explícitos e provocativos, quanto num convite à ação participativa, como ocorreu mais tarde. A diferença na proposta de Andrade era que o trabalho não parecia buscar nenhuma dessas soluções, mas somente apresentar‐se, com toda sua pureza e simplicidade implícitas, em um lugar tipicamente associado à classe trabalhadora. Portanto, o trabalho de arte invadiu um lugar ao qual supostamente não pertence, enquanto o próprio lugar invadiu o trabalho em um processo de contaminação recíproca.¹

Para ilustrar a imprevisibilidade da proposição, Andrade se recorda de um episódio que ocorreu logo após a inauguração daquela intervenção no Lanches Alvorada. Tentando convencer um amigo reticente a visitar o bar, o artista insistiu que se ele o fizesse testemunharia algo que nunca tinha visto antes. O argumento foi o suficiente para que o amigo decidisse fazer a visita. Enquanto estava no bar, assistiu surpreso na televisão, instalada ao lado das massas de tinta a óleo ainda frescas, os ataques às Torres Gêmeas em Nova York no dia 11 de setembro de 2001. Mais tarde, o amigo brincaria que a declaração de Andrade estava absolutamente certa.²

A atual proposta de “remontagem” dessa instalação iria associá‐la a outro conflito político, mais previsível, que está se desenrolando neste exato momento e cujas consequências irão afetar o futuro próximo. Desta vez, a arena é local, ao invés de internacional, e o artista tem total consciência da natureza da relação recíproca que está sendo proposta. A região ao redor da Estação Pinacoteca não é uma área urbana neutra. É um espaço social, cultural e, acima de tudo, politicamente carregado. Na manhã de 21 de maio de 2017, o atual prefeito de São Paulo, João Doria, em um ato de truculência e completo descaso contra outros seres humanos, ordenou que a tropa de choque evacuasse uma área dos Campos Elíseos, conhecida como Cracolândia. O próprio prefeito estava presente, usando uma jaqueta preta, falando com equipes de lmagem simpatizantes sobre uma cidade limpa, dizendo “agora basta” etc., enquanto a operação prosseguia demolindo prédios com seus habitantes ainda dentro.³

A proposta de Andrade de intervir em um pequeno bar local inserido em uma arena tão carregada não foi, portanto, incidental. Não era uma mera questão de remontar um trabalho, mas incorporar nessa nova versão as tensões muito específicas desse lugar. Os habitantes locais e os visitantes da Pinacoteca, cuja classe social e muito possivelmente as opiniões sobre o futuro da área se diferenciam de modo considerável, estariam reunidos de um jeito totalmente distinto da maneira como a instalação original sobrepôs seus públicos. Essa teria sido, de fato, uma ocasião muito rara.

Digo “teria sido” porque o museu, tendo considerado o atual estado volátil da região que sofre com intervenções policiais frequentes e não anunciadas (assaltos casos esporádicos de violência diurna) decidiu que seria perigoso demais propor que seus visitantes frequentassem a área. Assim, o artista adiou o projeto e espera realizá‐lo em um outro momento no futuro próximo.

Neste caso, mesmo que as ações dos diretores do museu não tenham levado à interdição e se mostrem uma consequência de algo que vai além de seu controle, as tensões que o evento proposto por Andrade teriam levantado não são inteiramente externas à natureza de sua obra. Pelo contrário, meu argumento neste ensaio é que na própria raiz do processo criativo de Andrade há um desejo de criar várias espécies de relações, algumas mais tensas do que outras.

Nesse sentido, Alberto Tassinari afirma com precisão que esses trabalhos de Andrade se tornam metáforas de uma sociabilidade, já que cada bloco de tinta “é definido pelas discrepâncias entre” si e outro bloco. A descrição que o crítico faz dessa condição, como “o outro do outro” poderia, de forma simultânea, ser aplicada tanto à obra de arte quanto às relações causadas pelo ato do artista colocá‐la no mundo.4

Em View of Delft (óleo sobre Vermeer) (2007/2017) [p.1], um grande retângulo azul e um retângulo amarelo menor ocupam uma parte do céu em uma reprodução da pintura de Vermeer. Vemos ali a sociabilidade metafórica que Tassinari sugere. A relação de alteridade efetivada entre cada bloco de tinta é multiplicada na relação anacrônica entre histórico e contemporâneo, entre representação e monocromo, entre a reprodução fotográfica e a tinta fresca.

Recentemente, Andrade explorou mais a fundo a relação entre fotografia e pintura em uma série de trabalhos que justapõe o campo monocromático com uma representação de paisagens, bem como acontecimentos e líderes mundiais feitos com técnicas de grafite em estêncil. Em suas escuras composições que parecem fotografias, tais como Bicicletaria, de 2011 [p.128–129], Grade, de 2010 [p.135], e Rua deserta com viaduto, de 2010 [p.131], vemos as repercussões sutis de sua exploração de dualidades em tensão. Já faz algum tempo que Andrade trabalha com a relação entre pintura e fotografia, esse par de disciplinas que poderiam ser descritas como “o outro do outro”. Tais obras também demonstram a profusão de possibilidades que ainda podem ser exploradas. Aqui, em retrospecto, nós podemos traçar como essas relações emergiram.

Em Office at Night (óleo sobre Hopper), de 2006 [p.7], o artista aplicou, sobre uma reprodução que parece ter sido tirada de uma página de catálogo, massas de tinta preta e azul que ocupam a parte superior de uma parede em uma pintura de Edward Hopper retratando uma cena em um escritório. A estratégia de criar relações parece ser a mesma do trabalho a partir de Vermeer, mas nesse caso uma outra relação é criada. Naquele mesmo ano, Andrade produziu uma instalação intitulada Paredes da Caixa [p.22], na qual blocos de cor ocupavam espaços discretos em um escritório real: a antiga sede de um banco que foi transformada ou preservada pela instituição como um museu de seu passado. Agora, o artista justapõe o espaço real com o espaço de sua reprodução. O termo “real” deve ser usado aqui com cautela, já que o trabalho intervém dentro de um espaço “preservado”, um espaço que, como na fotografia, está congelado no tempo. Portanto, a obra traz o museu e seus conteúdos de volta à contemporaneidade, de volta à vida. Em vez de habitar o mundo, leva‐o consigo. No entanto, o espaço real também é trazido de volta para o espaço ficcional da pintura de Hopper, um fato que a manobra posterior proposta pelo artista visa explorar mais a fundo.

Andrade também produziu o filme Uma noite no escritório (2007), no qual a instalação serviu de cenário. Nele, o papel do personagem do gerente do banco – um homem amaldiçoado por alucinações pictóricas – é representado pelo diretor do filme, o próprio Andrade.5

Os universos profissional, administrativo e artístico, fictícios e reais, são inseridos em relações discrepantes, tanto literal quanto conceitualmente, enquanto uma conjunção similar é dramatizada entre pintura e filme.

Antes da instalação Lanches Alvorada, o Projeto parede, de 2000, foi instalado no corredor do Museu de Arte Moderna de São Paulo. A arquitetura do museu foi trazida para a obra de forma similar, como nos outros exemplos subsequentes. Em vez de o museu impor uma interpretação particular à obra, é a própria obra que descola referências óbvias da história da arte. É impossível não pensar em Mondrian, por exemplo, quando olhamos para as fotografias que documentam o trabalho, tiradas através dos painéis divisórios de vidro da cafeteria do museu.

A dualidade intrínseca, “o outro do outro”, que emana desses trabalhos, revela a abordagem criativa pessoal de Andrade, que busca problematizar relações múltiplas e antagônicas: o espaço real e o simples, mas sofisticado, artifício do monocromo; a justaposição da abstração em sua forma mais pura e a imagem fotográfica; o cinemático e a imobilidade da foto individual; o espaço social e o universo cultural; o contemporâneo e o histórico. Essa lista poderia continuar ad eternum, no entanto, em todas essas situações, a tensão deriva, essencialmente, de uma justaposição inicial: colocar duas massas de cor contra e em relação uma à outra.

Há uma peculiar “realidade” nos próprios blocos de pintura, na forma como parecem “vivos” e ainda ativos em sua materialidade pastosa. Suas bordas mantêm os traços deixados pela remoção dos moldes, essas marcas feitas pelo instrumento que as continha. Como a advertência nos avisos improvisados da lanchonete Lanches Alvorada, essas superfícies parecem ainda não ter secado, como se sua massa ainda estive ativa, fresca, orgânica. Fica muito claro que essas áreas de pura cor e volume, que às vezes ocupam espaços diferentes na cidade, emergiram de explorações pictóricas do espaço e da cor, primeiro plano e pano de fundo. Podemos traçar seu desenvolvimento desde uma série de pinturas que materializou uma simplificação gradual da representação de espaços interiores e objetos.

Sem dúvida a série mais longa na trajetória de Andrade até agora, esses trabalhos são compostos por pares de blocos de cores contrastantes que emergem de algo que parece, em retrospecto, ser uma progressão natural. A transição em si parece ter ocorrido entre 1998 e 1999, mas as origens do processo que levaram a esse salto são anteriores, possivelmente de 1990. Em 1999, acontece uma transição clara de espaços interiores figurativos soltos em direção a blocos de cor abstrata.

Em muitas obras da década de 1990, a crescente uniformidade e planura dos fundos junto com a redução da gama de cores – reduzida para duas ou três, com o predomínio de verdes, amarelos, pretos e vermelhos –, servia para enfatizar um ou dois objetos muitas vezes discrepantes na composição. Talvez em referência a Vincent van Gogh, várias vezes uma cadeira acompanha a figura de uma árvore solitária e ambas assumem uma posição central nas pinturas, gerando a dúvida se são espaços interiores ou exteriores. Conforme essas pinturas progrediram ao longo daquela década, as figuras enigmáticas foram perdendo suas associações gurativas, transformando‐se em blocos planos, monocromáticos.

Em seu comentário sobre a exposição individual de Andrade de 1995, Lorenzo Mammì afirmou que, entre sua geração, sua obra parece ser aquela que permaneceu associada de maneira mais forte ao legado do expressionismo.6 No entanto, o crítico defende que, embora Andrade explore nuances que são específicas a referências brasileiras dentro dessa tradição, como Oswaldo Goeldi, ele se diferencia de seu predecessor por meio da própria materialidade da pintura, em vez dos grafismos planos da gravura. A observação de Mammì capta esse momento particular na trajetória de Andrade: o ponto médio no processo sintetizador de suas referências expressionistas e neoexpressionistas formativas que, como veremos a seguir, dá lugar à simplicidade elegante dos blocos de cor que já mencionamos. Podemos agora pensar nessa transição como o abandono gradual da iconografica do expressionismo em prol da materialidade da pintura que é apresentada na tensão entre planura e volume.

Hoje, falar em uma evolução da figuração em direção à abstração no trabalho de qualquer artista quase não faz sentido. No entanto, como pintor, o legado da história da arte não só se encontra fortemente presente no trabalho de Andrade, mas é também sua própria força movedora, proporcionando os próprios problemas que ele tenta resolver de forma incessante. Abstração e figuração, o problema do primeiro e segundo planos, a relação entre diferentes campos de cor, todas essas questões evoluíram em seu trabalho de forma anacrônica, contudo assim o fazem dentro de uma trajetória pessoal muito clara e coerente, uma trajetória que registra a resolução desses conflitos, ora gradual ora abrupta, que o artista impõe a si mesmo. Essa é de fato uma condição muito contemporânea. A evolução do trabalho, portanto, não segue qualquer máxima preestabelecida, mas revisita momentos passados (sejam eles em sua trajetória ou dentro do cânone mais abrangente da história da arte), quando necessário ou desejável.

A pintura, pela sua própria natureza e tradição, é autorreferencial. Não em um sentido greenberguiano da autonomia e especificidade da obra, mas em relação ao fato de que é um meio condenado a carregar sua própria história. Se a crise da pintura provém da compreensão de que, após os monocromos de Malevich, a pintura estava fadada a citar seu próprio passado, o retorno da pintura na década de 1980 marcou a aceitação final e a adesão a tal fato. Se naquela época isso foi anunciado por muitos como uma característica da era pós‐moderna, hoje, parece mais coerente argumentar, segundo Giorgio Agamben, que tal fato pertence à natureza anacrônica da contemporaneidade.

Crescemos acostumados a pensar sobre a “arte contemporânea” como algo que emerge da ruptura conceitual do expressionismo abstrato. Ou seja, uma nova forma de fazer arte que surge de uma certa genealogia da arte moderna, que se legitimou ao se rebelar contra o ideal de progresso em direção à abstração ou, mais especificamente, contra a especificidade da própria pintura como meio. Sob essa perspectiva, arte pop, conceitualismo e minimalismo são, por conseguinte, entendidos como três ramos inaugurais distintos, porém ligados, do contemporâneo. Cada um desses ramos rejeita aspectos específicos de seu predecessor comum e imediato, o expressionismo abstrato. No entanto, em cada um desses movimentos pode‐se dizer que a ruptura foi somente parcial e se deu por meio da referência a momentos anteriores dentro da longa duração da história da arte. Portanto, a arte pop aboliu a abstração mantendo a pintura e o plano bidimensional como seu principal suporte. Trouxe à tona referências claras à mídia de massas, mas cuja presença germinadora já podia ser encontrada no cubismo e no dadaísmo. O conceitualismo negou a especificidade do meio que havia definido a ideia de Greenberg sobre pintura modernista, mas o fez sem descartar a abstração por completo. Pelo contrário, pode‐se argumentar que levou a abstração ao seu limite, ao nível da linguagem e do pensamento. Isso foi conquistado invocando o legado de Marcel Duchamp e o ready‐made. O minimalismo também rejeitou a especificidade do meio, mas sem deixar de ser abstrato em sua natureza, revivendo de maneira explícita o legado do construtivismo europeu. Sendo assim, deve‐se concluir que aquilo que foi rejeitado em comum por essas três tendências rebeladas não foi o expressionismo abstrato em si, mas a ideia de um progresso linear da arte moderna.

Periodizar esses movimentos como uma sucessão de rebeliões traz suas limitações não apenas em termos do anacronismo presente na denominação do expressionismo abstrato, mas, acima de tudo, na especificidade, ou provincialismo, dessa linha genealógica em particular. Se Alfred Barr institucionalizou a ideia de arte moderna com a criação do Museu de Arte Moderna e a noção de uma trajetória em direção à abstração, Greenberg transpôs essa ideia para sua culminação lógica e obviamente americana.

Portanto, surge a questão de como considerar os casos em que a arte se desenvolve fora dessa genealogia. Devem ser considerados menos contemporâneos do que aqueles que seguiram a arte pop, conceitual ou minimalista? O fato é que parece que artistas do mundo todo encontraram e responderam à chamada crise da pintura entre o final da década de 1950 e a década de 1970 por meios diversos e múltiplos. Esses artistas passaram a articular suas variáveis e múltiplas tradições pictóricas locais com o ressurgimento internacional da pintura nos anos de 1980.

No Brasil, no início da década de 1980, uma nova geração de artistas foi quase imediatamente associada a esse chamado retorno da pintura. Essa prontidão se deveu em grande parte a tendências internacionais da época, como o neoexpressionismo alemão, a transvanguarda italiana e a bad painting nos Estados Unidos. Essa associação foi reforçada na Bienal de São Paulo de 1985, que ficou conhecida pela exibição de pinturas em um mesmo corredor compondo uma “Grande tela”. Esse evento colocou jovens artistas brasileiros, como Andrade, lado a lado com colegas internacionais.

Esses artistas são frequentemente descritos como uma “geração”, pois sua chegada em cena também coincide com um momento crítico nas transformações da política brasileira, que passou de um regime militar para o retorno da democracia, além de mudanças significativas na cena artística local. Uma consolidação relativa do mercado de arte contemporânea e um sentido de renovação trazido pela Bienal de São Paulo marcaram uma mudança significativa no ambiente cultural das décadas anteriores, após tantos anos de isolamento imposto e da repressão da expressão.

A “marca” geracional foi reforçada também por uma exposição realizada em 1984 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, que mostrou o trabalho de jovens artistas emergentes, muitos deles pintores, intitulada Como vai você, Geração 80?. No entanto, com o poder da visão retrospectiva, podemos ver certas distinções regionais e/ou individuais, especialmente na forma como esses artistas (pois muitos deles não são mais pintores) foram incorporados ao cânone nacional da história da arte.

Se naquele momento o rótulo serviu como uma forma positiva de identificação, hoje, três décadas depois, pode ter se tornado uma espécie de maldição. Tais associações muitas vezes restringem a contextualização crítica e histórica dentro de uma genealogia específica, que por sua vez traz o risco de aprisionar o artista dentro de um entendimento particular da década, negando ou, no mínimo, obstruindo qualquer sentido de progressão que o trabalho possa ter experimentado desde então.

Mais preocupante ainda é o fato de que quando generalizações internacionais e nacionais são combinadas, o sentido sugerido de renovação cultural nacional parece ser baseado na ideia de que princípios, tendências e modismos importados são de alguma forma adaptados aos locais de forma não crítica. Em resumo, implica a noção de tabula rasa que incentiva certa desconexão com o que aconteceu antes, seja em um nível local ou nacional. Parece‐me que esse conceito deve ser contestado em sua totalidade ou, pelo menos, reavaliado ou reconsiderado à luz não apenas das conquistas subsequentes do artista em questão, mas em termos do período histórico como um todo. Portanto, há de se ter cautela com generalizações abrangentes. É com esse aviso de cautela que devemos distinguir o surgimento e o desenvolvimento do trabalho de Andrade.

Andrade insiste em distinguir a si e a seus colegas imediatos de outros artistas que emergiram na década de 1980 em termos de sua educação artística e as relações que ocorreram a partir do estabelecimento de um ateliê conjunto, a Casa 7, que era formado por ele, Antonio Malta, Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Paulo Monteiro (e Nuno Ramos que, mais tarde, substituiu Malta). Os artistas eram amigos que se conheciam desde a escola, o Colégio Equipe, onde se reuniam ao redor da produção de histórias em quadrinhos, seu entusiasmo comum pelo rock e mais tarde pelas aulas de arte informais com Sergio Fingermann. Segundo Rodrigo Andrade:
 

Quanto à Geração 80, éramos totalmente à parte dela. Queríamos nos diferenciar. Todos que participaram da expo no Rio eram estudantes de faculdade, Parque Lage, Faap. A gente não,a gente tinha nosso grupo meio autossuficiente, a Casa 7 foi como a nossa faculdade […] Andávamos com amigos da música, do rock. A gente só conhecia os colegas de geração de longe, e só soubemos da exposição no Rio quando ela já estava aberta. Depois nos integramos, mas sempre à parte. Achávamos aquelas pinturas muito alegres e fúteis, decorativas […] e a futilidade do mundo da arte que adentrávamos e que nos deprimia só reforçou essa vontade de diferenciação (e mais ainda com a aproximação com críticos como Alberto Tassinari, Rodrigo Naves e Lorenzo Mammì). Queríamos algo mais consistente, tínhamos uma relação com o fazer e a tradição da pintura que os outros da geração não tinham. Ao mesmo tempo, tínhamos aquela velha relação adolescente com as histórias em quadrinhos (mas daí veio o Guston e resolveu o conflito).7

 

Além das referências estéticas e das histórias em quadrinhos, a própria carreira de Philip Guston teria chamado a atenção do jovem Rodrigo, que ainda tentava afirmar sua própria identidade criativa. Para Andrade, a transição entre ser um adolescente que gostava de desenhar quadrinhos e ser um artista profissional ocorreu quando a arte não era mais um prazer, mas um problema.8 Naquele início, o problema em questão parecia ser como articular sua formação com as influências internacionais a que ele era exposto, muitas vezes como consequência de visitar o ateliê do próprio Fingermann. Assim como Guston, Andrade parece se valer de seu passado, revisitando interesses antigos para então caminhar adiante.

Guston é um exemplo interessante de como os discursos predominantes da arte moderna colapsaram e foram redefinidos entre as décadas de 1970 e 1980. Tendo frequentado o segundo grau com Jackson Pollock, ele também viria a ser um celebrado pintor expressionista abstrato. Antes disso, Guston havia respondido ao expressionismo de Max Beckmann e à pintura metafísica de De Chirico. É para essas influências formadoras que ele retorna, de forma peculiar, em 1968, quando abandona radicalmente a abstração, adotando uma forma de figuração grotesca, metafísica ou do tipo história em quadrinhos existencialista. Guston faleceu em 1980 e sua morte motivou uma celebração mundial de seu trabalho, incluindo sua participação na Bienal de São Paulo de 1981. É nesse momento que Andrade e muitos outros de sua geração entram em contato com seu trabalho.9 Conforme defende Robert Storr, com sua morte e a retrospectiva itinerante que a seguiu entre 1980 e 1981, Guston se tornou um paradoxo do mundo da arte, sendo ao mesmo tempo um grande mestre do passado e uma importante referência para uma jovem geração de pintores.10

Uma considerável distinção também existia entre a abordagem geral da pintura e a abordagem de Andrade e do grupo que divida o espaço do ateliê na Casa 7. Andrade refuta o rótulo de “Geração 80”, pois este sugere um momento apolítico em que artistas, após a aparente seriedade dos anos de 1970, celebraram o prazer do ato de pintar. Para Andrade, os artistas da Casa 7 estavam mais interessados em produzir uma forma de pintura que fosse “pesada e antidecorativa”.11  O conceito de tensão entre a obra e seu público já se nota em sua abordagem desinteressada do circuito artístico local, um aspecto que eu identifico mais com o grupo COBRA do que com os movimentos transvanguardista e neoexpressionista da época.12 Nesse sentido, a adoção de materiais baratos, como papel kraft e esmalte sintético, oferecia a possibilidade de produzir grandes pinturas com gestos largos, livre da preciosidade do suporte da tinta a óleo sobre tela.

No catálogo que lançou o grupo Casa 7 em 1985, que de fato cunhou a expressão após a identificação do grupo com seu ateliê compartido, a curadora Aracy Amaral apontou como sendo um tanto problemática a discrepância entre a seriedade daqueles ambiciosos artistas jovens e a precariedade do papel kraft como meio.13 Ainda assim, como já vimos, essas discrepâncias se tornaram inextricavelmente associadas ao trabalho de Andrade, mesmo que de formas imprevisíveis na época.

Enquanto suas pinturas aumentavam em dimensão, seus temas se associaram a tópicos vulgares. A tinta barata era aplicada de uma maneira bruta, violenta e imediata no papel frágil. Apesar disso, seria errôneo pensar em uma ruptura absoluta com seus predecessores, pois vemos tanto temas sutis que decorriam da tradição do Grupo Santa Helena quanto referências, cada vez mais presentes, às xilogravuras de Goeldi.

A descoberta de artistas transvanguardistas e neoexpressionistas agiu sobre Andrade não tanto como uma influência direta, mas como a confirmação de uma necessidade interior, uma necessidade de resolver o conflito entre sua formação em gravura, pintura, naturezas‐mortas e sua obsessão infantil por histórias em quadrinhos, rock etc. Nesse sentido, a introspecção de Goeldi e a tradição do Grupo Santa Helena se encontraram com a pintura narrativa, existencial e metafísica de Guston. Tal conjunção é evidente em O gabinete do senhor Oliva e Atelier abandonado [pp.112–113], ambos de 1985, que exploram o tema recorrente do interior (escritório, ateliê, etc.), mas aqui com uma referência explícita ao crítico de arte transvanguardista Achille Bonito Oliva. Em comparação com o gabinete do crítico abarrotado de telas, na pintura do ateliê abandonado, ele deixa a cargo de nossa imaginação desvendar por que o ateliê foi esvaziado: se foi pela forte procura dos trabalhos ou devido à própria indiferença do artista. Uma relação entre as pinturas parece ser incentivada, dada suas dimensões comuns (50 × 60 cm) ou pela oposição, o cheio e o vazio, que a justaposição implica.

Os porões da academia e Sem título [pp.118–119], ambos de 1984, também compartilham as mesmas dimensões (110 × 130 cm). Marrons, laranjas e vermelhos‐escuros são as cores predominantes nessas representações de interiores atulhados. Ambos são lugares claustrofóbicos, sujos e bagunçados. No primeiro, vemos uma variedade de objetos não relacionados: um animal empalhado ou um molde de gesso de uma águia com as asas abertas; um globo; o braço cortado da estátua da liberdade ainda com a tocha na mão; um livro; um esquadro; um brasão e telas com molduras elaboradas, seus conteúdos escondidos já que estão viradas para a parede. Todos esses elementos competem por espaço no interior lotado. No segundo, notamos os destroços de alguma forma precária de habitação, talvez um artista fumante inveterado e grande consumidor de álcool. As paredes estão desmoronando e o chão está coberto de restos de objetos não identificáveis, potes de cerâmica e talvez rolos de papel. Os móveis mal se encaixam no espaço e cobrem em parte um pequeno quadro na parede ao fundo. Um relógio de parede e um relógio de pulso descartado parecem referências supérfluas da passagem do tempo, dada a quantidade de bitucas de cigarro espalhadas pelo local.

Quando Andrade fala sobre o impacto decisivo que o catálogo da Documenta 7 teve em sua produção inicial, é natural pensá‐lo como um meio pelo qual ele entrou em contato com a ressurgência da pintura em sentido mais amplo. A exposição de 1982 incluía trabalhos de Georg Baselitz, Francesco Clemente e Markus Lüpertz, para citar apenas alguns artistas que Andrade reconhece como influências. Contudo, ele fala do impacto que a descoberta desses artistas teve na forma como ele havia sido treinado e na dificuldade de articular essa formação com seus interesses anteriores, tais como as histórias em quadrinhos. Além disso, ele confessa que mais do que nenhum outro pintor, foi a descoberta da obra de Richard Long, na natureza e sobre a natureza, que teve o maior impacto em sua maneira de pensar a arte.14 Ao justapor, como fiz acima, suas primeiras pinturas em pares, relações narrativas aleatórias parecem emergir espontaneamente. O estúdio e o depósito de peças acadêmicas descartadas passam a se relacionar de maneira estranha: talvez se tornem ou já sejam “o outro do outro”.

Em uma tentativa de concluir ou fechar um padrão cíclico particular na trajetória de Andrade, sugiro que revisemos um de seus trabalhos mais antigos (o mais antigo nesta exposição) à luz das últimas manifestações dessa trajetória, com a qual este ensaio foi iniciado.

Em 1983, Andrade produziu uma pintura sem título de tamanho modesto (33 × 46 cm) representando o interior de um lugar que parece ser o ateliê de um artista [p.115]. Nesse espaço é exibido um conjunto de pinturas, colocadas nas paredes ou contra elas. Embora isso não esteja definido de forma clara, as pinturas representadas na composição parecem em geral abstratos coloridos com fortes amarelos e vermelhos. Uma delas assume uma posição central apoiada em uma cadeira, compondo uma pintura dentro de uma pintura, enquadrada pelo ambiente.

Sem título (1983) é uma obra que parece anunciar uma transição que é representada em si mesma e sobre si mesma. Ela apresenta a diferença entre sua própria estética e a das pinturas representadas nela. Nenhuma das pinturas dentro da pintura parece representar ambientes fechados, e sua escala cromática se diferencia fortemente da representação do espaço interior que os contém.

Uma exceção é a pintura em frente à janela veneziana ao fundo. É uma obra de cores sóbrias que parece representar uma paisagem, talvez o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, ou uma pessoa nua reclinada – é difícil dizer ao certo. A própria janela parece separar o ateliê no primeiro plano de outro mais ao fundo, talvez de outro artista. Ali, podemos observar pela janela o que parecem ser várias telas quadradas penduradas na parede oposta. Na realidade, conforme descobri depois, a janela reflete de maneira muito pertinente os trabalhos do próprio Andrade, estes que são colocados na parede oposta e revelados pelos painéis de vidro que atuam como espelhos.

A pintura de 1983 é claramente expressionista em seu estilo, mas contrasta bastante com outros trabalhos que Andrade viria a produzir no ano seguinte. Seu espectro de cor é mais vasto e o ambiente interior retratado parece bem menos desolado do que o ambiente nas obras subsequentes que discutimos aqui.

Além disso, apesar de invertida, uma relação direta se estabelece entre os interiores abarrotados de seu trabalho inicial e os ambientes atulhados nos quais ele agora escolhe colocar seus simples, mas sofisticados, monocromos.

Também podemos pensar nessa separação causada pelo espelho em termos da dualidade que marcaria o trabalho posterior de Andrade. Talvez uma obra específica venha à mente, tal como Interior escuro [p.134], de 2010, que pode ser entendida, nesse sentido, como o artista retornando ao quadro de 1983, aos painéis espelhados, somente para perceber que o tempo lhe tornou opaco. Esse não é um argumento absurdo como pode parecer à primeira vista.

Sem título (1983) é uma pintura que funciona como uma espécie de manifesto pictórico, pois além de anunciar uma ruptura entre ela e as outras pinturas representadas dentro dela, também é desconcertante ao se mostrar como uma premonição de certos temas que emergiriam muito mais tarde na carreira de Andrade, tal como o tema da janela ou a justaposição de dois campos ou massas de cor que apareceria ainda depois. O artista mal poderia visualizar essas associações quando produziu esse pequeno quadro em seu estúdio na Casa 7, a única obra presente nesta exposição pintada a partir de observação. No entanto, essas são qualidades que o artista, quando mais maduro, percebeu ao compilar as imagens para uma publicação de 2008 sobre seu trabalho, a qual estou usando para descrevê‐lo. Em outras palavras, o artista mais velho agora entende os aspectos de uma pintura inicial, mostrando certos impulsos que ele agora reconhece como desdobramentos em sua produção atual.

Se em As meninas, de Velázquez, o espelho revela o tema (o rei e a rainha) de uma pintura cujas costas estão viradas para o espectador, as janelas espelhadas nesse pequeno quadro de Andrade de 1983 revelam seu tema (embora seu tema mais recente): a retrospecção. Agora, a pintura não é mais uma representação de um estúdio, mas uma obra cujo tema é a representação simultânea de seu futuro, presente e passado.
 
Michael Asbury é crítico de arte, curador e professor de história da arte.

 

¹ O termo “contaminação” foi usado por Taisa Palhares em seu texto sobre essas intervenções. Ver: PALHARES, Taisa. “Espaços contaminados: a pintura como experiência de diferenciação”. In: Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 159.

² ANDRADE, Rodrigo. Palestra na Escola da Cidade: minha pintura no contexto da arte contemporânea. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=nA97‐e92YB8>. Acessado em 28 de setembro de 2017.

³ Ver: Blog da Raquel Rolnik. Disponívelem: <https://raquelrolnik.wordpress. com/2017/05/25/intervencao‐na‐cracolandia‐ luz‐para‐quem/>. Acessado em 28 de setembro de 2017. Ver também: Artur Rodrigues, “Doria quebra o silêncio, volta a falar de cracolândia e promete não recuar”. Folha de S. Paulo, 29 de maio de 2017. Disponível em: <http://www1.folha. uol.com.br/cotidiano/2017/05/1888484‐doria‐ quebra‐o‐silencio‐volta‐a‐falar‐de‐cracolandia‐ e‐promete‐nao‐recuar.shtml>. Acessado em 21 de outubro de 2017.

4 TASSINARI, Alberto. “Figurações pelo outro”. In: Rodrigo Andrade, op. cit., p. 12.

5 O filme foi codirigido por Andrade e Wagner Morales.

6 MAMMÌ, Lorenzo. In: Catálogo da exposição, Camargo Vilaça, São Paulo, 1995, p. 7.

7 E‐mail do artista (15/09/2017).

8 Palestra de Rodrigo Andrade na Escola da Cidade: minha pintura no contexto da arte contemporânea, op. Cit.

9 Andrade menciona que descobriu Guston em catálogos, e não na bienal. Ibid.

10 STORR, Robert. “Phillip Guston: Hilarious and Horrifying”. In: The New York Review of Books, 8 de março de 2015.

11 Ver “Cronologia”. In: MESQUITA, Tiago (org.). Resistência da matéria. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014, p. 213.

12 Andrade recorda‐se de ver uma exposição do grupo COBRA no MASP. Eles também estavam presentes na Bienal de São Paulo de 1985.

13 AMARAL, Aracy. “Uma Nova Pintura e o Grupo Casa 7”, catálogo da exposição, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1985. In: AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005), vol. 3, Bienais e artistas contemporâneos no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 141.

14 Andrade, em um e‐mail para o autor (01/10/2017), disse, por exemplo: “No catálogo da Documenta 7, um trabalho me marcou especialmente, não foi o de nenhum pintor da transvanguarda, e sim o de Richard Long e seus arranjos de pedras em locais ermos como o topo de montanhas etc. […] Aquilo me deu uma sensação de vazio, de ar rarefeito da arte, que me deu medo e causou uma crise forte que me obrigou a tomar providências que culminaram na invenção dos painéis de esmalte sintético sobre papel kraft…”.

 
Texto publicado originalmente no catálogo Rodrigo Andrade: pintura e matéria (1983-2014)/ curadoria e texto Taisa Palhares ; texto Michael Asbury. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017. Exposição realizada na Estação Pinacoteca, de 9 de dezembro de 2017 a 12 de março de 2018.