Praça da República

Thais Rivitti

 

No centro da exposição estão cinco palhaços decrépitos. Talvez não sejam assim tão velhos, mas têm o olhar perdido, enevoado, olhos pequenos, embaçados ou semicerrados, ofuscados pela maquiagem pesada, dando a impressão de estarem cansados. São pinturas espessas que parecem estar derretendo.
Quando olho para esse conjunto, penso nos retratos de Warhol, sobretudo nas séries de serigrafias de Marilyn e Liz Taylor. Por oposição, evidentemente. A maquiagem das Marilyns é uma mancha gráfica, uma camada fina de tinta, que delimita uma área de cor. A maquiagem dos palhaços é densa e irregular. Se as cores das manchas impressas se alternam em combinações variadas nos trabalhos de Warhol, funcionando como camadas independentes, nos palhaços de Rodrigo, é a própria maquiagem o objeto da pintura. Retirando-a quase não sobra nada – daí a existência de áreas não pintadas, vazias, nos quadros em questão. As pinturas de palhaço, cheias de marcas de pincel, espátula, massas de tinta que criam acúmulos e texturas, apresentam o avesso do efeito evanescente e imaterial dos retratos do artista americano.
Que a cultura popular com a qual Rodrigo Andrade se relaciona nessa exposição seja diferente da cultura pop de Warhol não resta dúvida. Longe das super stars, do ambiente da Factory, do glamour do underground da Nova York dos anos 1960, Rodrigo visita a Praça da República, com seus pintores de domingo, imigrantes africanos, senhoras vendendo panos de prato, artesanato barato e barraquinhas de comida.
Com esses retratos, de certa forma, visionários, Warhol anunciava a autonomia da imagem na sociedade do espetáculo. Nas pinturas de Praça da República, Rodrigo Andrade desencrava temas e modos de pintar antigos, velhos esquemas e técnicas hoje tachados como canhestros. Mas esse endereçamento ao passado – não um passado rigorosamente temporal, pois sabemos que a Praça da República, bem ou mal, sobrevive nos dias de hoje, mas antes a um tipo “arcaico” de pintura – não se dá em uma chave de fácil compreensão. Não se trata de um elogio do popular (um resgate, no sentido forte do termo), nem de uma condenação, uma exposição irônica ou paródica de suas francas limitações.
Trata-se antes de um embate, estabelecido no campo da pintura, que tem como pano de fundo, a meu ver, uma das grandes questões colocadas à arte ainda no século XX. Questão que toca a noção de autonomia do campo estético e esbarra na ideia utópica de dissolução da arte na vida. Os trabalhos de Praça da República que estão concentrados na sala do fundo utilizam a forma convencional do retrato (enquanto na sala da frente temos as igualmente convencionais pinturas de paisagem). Dentro do já estabelecido gênero “retrato de mulheres” o artista toma como modelo, no caso da tela “Loira”, uma pintura feita com spray na fachada de um salão de beleza. Essa figura, um exemplo dos padrões de beleza anunciados nas revistas femininas – loira, olhos azuis, cílios longos, batom cor-de-rosa e cabelos esvoaçantes – torna-se estranha na tela. Uma pintura muito densa cria uma espécie de máscara, como a ressaltar a distância que o desenho infantil da mulher, retirado do grafite no portão, guarda de qualquer imagem real. Camadas de tinta são adicionadas, numa espécie de photoshop com tinta óleo. Por último, um efeito de brilho, construído com uma camada de tinta branca em pontos específicos, nos remete a uma imagem fotográfica. O brilho dos flashes das câmeras refletido no rosto da modelo… Os pretos-velhos, por sua vez, compõem uma sequência imita, passo a passo, a História da Arte do realismo ao cubismo. Aquilo que as pinturas cubistas apresentavam como novidade estarrecedora agora aparece como um maneirismo desprovido de intenção revolucionária, um mero modo de composição automatizado. A figura do preto velho foi modernizada. Literalmente.
Nas paisagens, abundam degradés pouco sutis, reflexos da luz da lua ou do sol na água (seja do mar, de lagos ou rios) e flores pintadas com as marcas de impressões do próprio pincel na tela. Algumas aludem ao que é tipicamente brasileiro: o pantanal, o cerrado e a floresta tropical. Um nicho bem explorado por pintores amadores, de olho no sucesso garantido que a reiteração da imagem de um Brasil exótico e belo traz. Outras fazem parte de um repertório mais amplo de pintura, como o luar refletido no mar (e a onda quebrando nos rochedos) e ao tema clássico do incêndio na floresta. Estes também, espécie de best sellers da pintura.
Quem está familiarizado com a produção de Rodrigo Andrade pode descobrir, em seus trabalhos anteriores, alguma semelhança com as paisagens dessa exposição. A geração de artistas a que ele pertence, que iniciou a produção nos anos 1980, já encontra uma cena artística em que a depuração formal do alto modernismo norte-americano estava sendo destituída e que a arte pop ganhava reconhecimento. Rodrigo, desde de suas primeiras obras, deixa o universo popular entrar: a referência dos quadrinhos, o diálogos com pinturas populares, o ambiente do boteco, em “Lanches Alvorada”. A pergunta que a presente exposição parece colocar é: valeria a pena construir uma história da pintura descolada de uma história da Arte? Tal possibilidade, aberta na contemporaneidade, levaria a uma análise que abarcasse não apenas a pintura que está nos museus, mas também aquelas estabelecidas em lugares diversos: do grafite em portões de aço aos desenho animados da Disney. Mas decidir se essa exposição apoia ou desaconselha tal empreitada seria como perguntar a Warhol se seus trabalhos, que expunham o modo de funcionamento da indústria cultural norte-americana, aderiam ou eram críticos a esse sistema.

Thais Rivitti é curadora e crítica de arte.

Texto publicado originalmente no site: https://atelie397.com/1812-2/
Por ocasião da mostra Rodrigo Andrade – Praça da República, exposta no Ateliê 397 durante o período de 30 de novembro a 18 de dezembro de 2015 e 11 a 22 de janeiro de 2016.