Onde colocar uma forma?
Rodrigo Andrade
Mesmo que se dirija, na pintura, em direção a um estado de pouca liberdade onde apenas algumas coisas podem acontecer, de alguma maneira o desconhecido e o que é livre acabam por fazer a sua aparição.
É normal para mim estar trabalhando em uma pintura por um bom tempo quando chega um momento em que a arbitrariedade desaparece e a tinta pousa nos locais a que parecia ser destinada.
A substância de que é feita a pintura – pigmento e espaço – é resistente à nossa vontade e não muito inclinada a assumir sua posição no plano e permanecer nele.
A pintura parece uma impossibilidade. Só de vez em quando se vêem os sinais de sua luz. Isso, certamente, deve-se à estreita passagem entre o que é diagramação e aquele que outro estado – a corporeidade.
Nesse sentido, pintar não é representar, é possuir”
Philip Guston, 1956 (Tradução: Antonio Malta)
Comigo também acontece de ficar um bom tempo trabalhando numa pintura, escolhendo as cores e posicionando as formas no quadro. Mas no meu caso não há lugares para os quais as formas parecem estar destinadas, e a arbitrariedade não desaparece. Pois é a própria arbitrariedade que fica em evidência nas minhas pinturas.
Nos meus quadros, as formas devem estar em qualquer lugar. E o problema é que qualquer lugar serve e qualquer cor serve, embora, para isso fique evidente, tenham que ser aqueles lugares e aquelas cores. Às vezes, diante da tela em branco, sinto-me como um asno de Buridan, daquela alegoria filosófica medieval, que diante de duas quantidades equivalentes de ração fica sem ter como decidir qual comer, a não ser por acaso. Como eu posso decidir quais cores usar para um par de retângulos? Posso ficar um bom tempo nisso. Azul e vermelho ou amarelo e cinza? Tanto faz. Então decido arbitrariamente. Afinal qualquer cor serve (como já dizia Picasso, aliás).
Para Guston, o dilema “onde colocar uma forma?” resultado de um embate, de uma dificuldade sem a qual aquela forma não se justifica. Seu processo fica à mostra nas marcas das hesitações que evidenciam os julgamentos e o trabalho exigiu. Guston diz, num outro texto, de 1965, que ele é um moralista e que não pode aceitar uma forma que não tenha pago seu preço. Esse moralismo está ligado a uma tradição ocidental desde o Renascimento. No capítulo Fórmula e Experiência (pags. 151-152), de Arte e ilusão, Gombrich explica:
É essa busca incessante, essa sagrada insatisfação, que constitui o fermento da mente ocidental desde a Renascença (…)”
Para mim, a moral artística de base renascentista – que no fim das contas ainda é Guston – me parece superada na medida em que eu não preciso exibir – ou esconder “em muitos esboços que precedem a obra acabada” – as marcas do dilema. Não preciso mostrar a nota fiscal do esforço que uma obra exigiu para ser feita. Eu posso colocar uma certa forma num determinado lugar e deixá-la ali mesmo, como está. E, realmente, muitas vezes, é assim que enfrento o dilema: diante de duas formas equivalentes, escolho qualquer uma, executo, e pronto. Não há uma verdade da forma final nem uma luta contra esquemas que reflita uma experiência singular. O que importa, nestes meus quadros, é que sejam feitos, como já me disse o pintor Fabio Miguez. E feitos sem vencer dilemas, mas antes deixando-os transparecer. Eu espero que eles aparentem isso. Por isso qualquer cor serve. São essas cores. E porque não são outras? Porque decidi por estas, e por elas, como em tudo na vida, também tenho que responder.
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição, Rodrigo Andrade. São Paulo: Marília Razuk Galeria de Arte, 2002.