Olhares

Paulo Venancio Filho

 

Na contracorrente de uma finissecular pintura pós-moderna repleta de alegorias, referências e citações, a pintura atual de Rodrigo Andrade atinge uma simplicidade surpreendente, única e corajosa, e que por pouco não passa de uma quase banal sinalização. Poucos, pouquíssimos elementos, um quase nada visual a constitui. Como então qualificar isso que é tão desprovida dos signos correntes da atualidade? Concreta? Geométrica? Construtiva? Minimal? Ou pós/anti/neo todas as definições anteriores, ou simplesmente não importa? Pois nas telas encontramos nada mais do que alguns elementos sobre um plano neutro. Nada além de evidentes retângulos compactos de tinta, apenas. Uma equação de poucas variáveis; densas e inequívocas massas monocromáticas que proporcionam uma sinestesia envolvente e extraordinária. Sem dúvida uma pintura toda ela “para fora”, assumindo o risco total da facilidade.

A escolha das cores faz pensar num encontro de pares cromáticos amorosos que pela primeira vez se encontram lado a lado e nada sabem um do outro. E uma surrada canção romântica faz dançar um casal solitário envolvido numa tensa e aberta sensualidade que os atrae e afasta, como células cromáticas num jogo de sedução sem palavras, só de olhares. Também estas telas nos “olham” da mesma maneira que nós as olhamos, de frente e sem pronunciar palavra, com a franqueza de quem se desarma. E nesse olhar está o tudo e o nada.

Não tivesse experimentado daquela pesada materialidade pictórica dos anos 80, a grosseira pasta física das tintas, saturação e o esgotamento da tela provavelmente Rodrigo não poderia chegar aqui onde chegou. E é como se ocorresse a desbastação de toda uma experiência pictórica acumulada. Se antes houve uma fase goeldiana, então agora compreende-se a atração pela economia plástica do nosso solitário expressionista. Agora vemos alguma coisa como as cores de Mondrian e Volpi misturadas à mão e entregues ao emassador de parede que, com a colher, pesa a massa na mão e, como prazer e esforço, joga o cimento direto na superfície. Se é assim, o botequim é tanto o espaço dessas telas quanto do peão de obra ali tem seus momentos sem opressão, e as observa, com o mesmo prazer, que às belas mulheres que passam e não pode ter.

A naturalidade franca dos quadros, que sabemos vem de uma experiência historicamente carregada, desarma aquele que olha. Essas telas esplêndidas nos colocam num estágio grau zero, como se reexperimentássemos uma infância moderna refundada, novamente o risco de tela em branco. Há uma tal plenitude nesses simples elementos, nesses retângulos de tinta nos quais parece até se sentir o poder de uma força que experimentamos de imediato – a força de uma autonomia própria e legítima. Diante disso toda a veemência retórica pós-moderna como que desaparece e cala. Poderíamos apenas especular vagamente que estamos diante de uma despretensiosa reinvenção e releitura da visualidade urbana através de uma sensibilidade agudamente pictórica que absorve a existência imediata viva através da franqueza autêntica dos olhares.

 
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição, Rodrigo Andrade. São Paulo: Marília Razuk Galeria de Arte, 2002.