Na fronteira

Taisa Palhares

 
A exposição Rodrigo Andrade: pintura e matéria (1983-2014) reúne pela primeira vez mais de cem trabalhos que apresentam uma visão significativa da produção de Andrade, dos anos 1980 até 2014. Não seria exagero afirmar que, dentre todos os artistas de sua geração, marcados pelo movimento de retorno à pintura, ele é quem se manteve dedicado quase exclusivamente ao meio pictórico no decorrer dos anos. Não haveria nisso, contudo, uma adesão simplista à ideia da pintura como uma atividade superior, ou à defesa da pureza modernista diante do hibridismo da arte contemporânea. Ao contrário, desde o início o trabalho do artista revela uma vontade por vezes visceral de tensionar as certezas que limitariam sua atividade, e isso a partir do gesto categórico de seu fazer.

As obras escolhidas para exposição pretendem evidenciar esse movimento segundo uma ordem cronológica, mas ao mesmo tempo estabelecem relações entre pinturas de diferentes fases ou épocas. Se numa leitura mais superficial sua produção ora tende à formalização abstrata, ora se volta à figuração, sua interpretação não deve ser feita a partir da perspectiva teleológica, pois se na aparência essas etapas são opostas, há características comuns que unem seus trabalhos. Como o artista comenta em entrevista ao crítico de arte Tiago Mesquita: “Eu me sinto condenado a um movimento constante. […] Dá para falar num movimento pendular, ou circular, entre figuração e abstração, mas as questões retornam sempre em outro nível, como uma espiral”.¹

Pode-se dizer que desde sua formação, ainda nos anos 1970, Rodrigo Andrade manifestou um interesse idêntico pela história da arte e por imagens e produções localizadas na indústria cultural. Já com quinze anos, a paixão pelo desenho e pela narrativa das histórias em quadrinhos andava ao lado da curiosidade por artistas como Edward Hopper, Oswaldo Goeldi e Giorgio Morandi.² De certa maneira, a convivência dessas referências díspares constitui-se no amálgama visual da base de sua poética, às quais irão se juntar o cinema, a fotografia, a pintura popular, a vulgaridade do kitsch e um interesse genuíno por imagens ordinárias e anônimas, além de muitos outros artistas de épocas e períodos diferentes.³

Essa ligação não é esclarecida em termos de influência. Tampouco seu trabalho realiza o exercício um tanto vazio de citação e apropriação que marcou parte da pintura na década de 1980. É nisso que reside seu interesse e importância, pois ao partir de uma visualidade contaminada, que não se pretende pura e nem é orientada a estabelecer hierarquias, Andrade traz para o campo do fazer pictórico aquilo que convive simultaneamente e de maneira desordenada na vida cotidiana. Entretanto, se essas pinturas nos remetem ao circuito banalizado das imagens no mundo contemporâneo – em que uma pintura de Van Gogh circula com a mesma abrangência e rapidez de fotografias documentais de grandes tragédias –, a aposta de Andrade não está em reafirmar o diagnóstico da superficialidade identitária do nosso universo cultural. Seu trabalho, na verdade, poderia ser pensado dentro do contexto de uma estética da negatividade, em que aquilo que é visto como igual, e por isso banal e ordinário, é transformado em não idêntico. Esse estranhamento se dá pela presença da matéria que, ao menos desde a realização das telas feitas a partir da aplicação de pares de blocos de tinta na superfície branca (1999-2009), se restringe ao material mais básico da pintura: a tinta a óleo. A materialidade exacerbada e heterogênea de seus trabalhos da década de 1980, como as colagens e as pinturas sobre persianas, reaparece então na densidade da tinta. Sua fisicalidade não deixa de ser algo excessivo, afirmativo. E é dessa maneira que recoloca a fronteira entre a arte e a aparência do mundo.

Na mesma entrevista realizada com Tiago Mesquita, Rodrigo Andrade nota que a ambiguidade de seus trabalhos se dá pelo fato de que neles os espaços coexistem, sem que desapareçam um no outro: o espaço do mundo e o espaço ilusório da tela. Retomando o estudo do historiador Johan Huizinga sobre o lúdico, ele descreve de forma clara e definitiva o que é essencial em sua poética: o jogo entre o imaginário e o concreto, o traço ilusionista de toda arte e simultaneamente o fato de ser artifício, coisa feita de matéria física.4

É na presença corporal da matéria, cuja potência, por mais delimitada em contornos conhecidos que ela seja, não deixa de perder um aspecto de organismo vivo e informe, alheio à intenção última do artista, que também nos leva a um outro componente fundamental de seu trabalho: o prazer. Se pelo menos desde a segunda metade do século XVIII a estética define a arte como um “prazer desinteressado” e por isso diferente de toda outra forma de trabalho manual ou utilitário, sabe-se que no século seguinte a exploração do sensorial serviu para moldar as primeiras formas de diversão da cultura de massa. O prazer que era mental, incorpóreo e puro, transforma‑se rapidamente em atração sensorial. Ainda separada dos prazeres “leves” da cultura de massa, a arte moderna não ficaria alheia à sedução da superfície desse novo mundo. Que o diga o corpo desnudo chapado em primeiro plano de Olympia (1863), de Édouard Manet.

Sem querer voltar às origens de nossa época, o elemento sensório da arte em Rodrigo Andrade parece ter um papel especial. A reunião desses trabalhos evidencia, na chave do jogo citado acima, que se, por um lado, ela nos atrai ao ponto de muitas vezes ficarmos com uma vontade irresistível de pressionar suas superfícies, por outro, sua matéria densa também nos afasta daquilo que julgamos conhecido, semelhante ao nosso mundo cotidiano. Esse movimento de atração e repulsa torna-se claro na série realizada para a Bienal de São Paulo, em 2010. As grandes telas de Matéria noturna [pp.130–135] são pintadas a partir de fotografias ordinárias: cenas noturnas da cidade, do interior do ateliê do artista, paisagens naturais, ou seja, imagens em nada especiais nas quais Andrade faz uso do estêncil para aplicar uma camada grossa de tinta preta. Esse processo, que em um primeiro momento atrai fisicamente o espectador, chama atenção para a concretude daquilo que é representado como ilusório e ao mesmo tempo repele, na medida em que a densidade da matéria negra recoloca a opacidade do mundo. Podemos pensar quase num prazer negativo.

Por isso, não se trata aqui de definir o que é a pintura afastando-a daquilo que é divertido e superficial na sociedade contemporânea, tentando assim salvá‑la por meio de uma seriedade estéril que a afastaria definitivamente da vida. Mas também não se trata de mergulhar completamente na banalidade passageira dessa mesma vida, sem exigir qualquer tipo de distinção. Como eu já havia notado em um texto anterior sobre o artista,5 há em Rodrigo Andrade uma “autonomia relativa”, em que apesar de estarem ambos em diálogo e aproximação constantes, a arte não se transforma no mundo e o mundo não é estetizado, tornando-se arte.
 
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A pintura mais antiga da exposição data de 1983 e representa a sala do ateliê coletivo que Rodrigo Andrade manteve com os amigos Fábio Miguez, Paulo Monteiro, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos entre 1982 e 1985, e que logo em seguida daria nome e identidade ao grupo, conhecido como Casa 7.6
Única pintura de observação de toda a exposição, a obra apresenta um tema recorrente na história da arte e que se repetiria em outras telas de pequeno porte, como Atelier abandonado (1985) [p.113] e O gabinete do senhor Oliva (1985) [p.112], ou ainda, na grande pintura da série da Bienal de 2010, baseada na fotografia de seu ateliê atual, Interior escuro (2010) [p.134]. São locais onde a presença do artista é muitas vezes indicial, sendo evocada nos objetos espalhados de maneira aleatória, e que dão a impressão de um amontoamento caótico, de coisas que caíram em desuso ou que simplesmente foram abandonadas (cadeiras, mesas, papéis, chassis, molduras etc.). Ambientes fechados que refletem intimismo e solidão.

É com os painéis em papel kraft e esmalte sintético [pp.106–111] que Andrade começa a trabalhar em formatos maiores, influenciado por artistas neoexpressionistas alemães que ele veria na Bienal de 1983, como Markus Lüpertz, cuja vulgaridade da pintura, que remete a algo feito de imediato e sem grandes elucubrações, exerceria uma força de atração sobre a obra de Andrade. Ou o canadense Philip Guston, uma inspiração constante em sua produção. O conhecimento desses pintores faz com que a obra do artista passe por um movimento de liberação. Particularmente nos painéis, os interiores são fragmentados e uma força incontrolável parece se expandir para além da superfície. A matéria, que ainda é rala, ganha presença inconfundível com o brilho e o efeito escorrido do esmalte sintético. Dois anos depois, Andrade é convidado a participar da 18ª Bienal de São Paulo, onde suas pinturas gestuais e expressionistas em tinta a óleo irão participar da “Grande tela” [p.120–121].

A primeira ruptura com a figuração neoexpressionista se dá em 1986, na sua primeira individual na galeria Subdistrito, em São Paulo. Rodrigo trabalha com colagens e o material, antes restrito à tinta, passa a incorporar elementos brutos, como borracha, chumbo e papelão. Nesse momento, ocorre um rebaixamento de tom e a gestualidade expressionista é matizada pela composição de formas que lembram uma certa racionalidade geométrica [pp.87‑88, 104]. Uma intenção de estruturação da matéria amorfa também aparece nas duas grandes pinturas com persianas, de 1990 [pp.100–103].

Ainda dentro do primeiro momento de sua produção, em 1994, Andrade irá realizar um conjunto de pinturas que apontariam para uma transição efetivamente realizada no final dos anos 1990. Na série apelidada de Goeldiana [pp.92, 96–97], os elementos figurativos são envoltos por um espaço denso, de cores chapadas e monocromáticas, sobressaindo-se o uso da cor preta. A relação entre plano e profundidade se torna problemática e as figuras perdem volume, sendo compelidas por esse espaço entrópico. O gesto se torna mais contido e a matéria impenetrável.

Expostas pela segunda vez desde que foram realizadas, essas pinturas estabelecem uma relação direta com seus trabalhos mais recentes. Nelas já é possível observar o movimento em direção à contração da matéria que ocorrerá na fase compreendida como “abstrata”, evidenciado na pintura Sem título, de 1998 [p.83]. Nessa série, iniciada em 1999, Andrade desenvolve um novo tipo de procedimento que marcaria sua produção posterior. O artista transforma as figuras em blocos geométricos de cor pura que são aplicados por meio do estêncil na superfície branca da tela. Atitude radical, que parece querer chegar a um grau zero da pintura. Para além de toda a questão que essas telas colocam no que diz respeito às relações entre figura e fundo, plano e profundidade, espaço do quadro e o espaço do mundo,7 o trabalho se liberta da gestualidade exacerbada e reencontra uma qualidade gráfica e direta que já estava presente em seus primeiros trabalhos, notadamente aqueles em papel kraft. Essas polaridades mencionadas passam a se determinar reciprocamente, ampliando o raio de ação da superfície fisicamente delimitada da tela, na mesma medida em que a cor se contrai em volumes robustos de tinta.

Os blocos são colocados em pares de dois ou quatro, e são feitos de formas ordinárias, banais: círculos e retângulos que admitem pequenas variações de tamanho, volume e desenho das arestas. A universalidade de tais formas aproxima-se mais dos objetos padronizados da indústria e do design do que da metafísica da pintura geométrica abstrata do início do século XX.

Seu jogo é baseado na inter‑relação que os blocos estabelecem entre si, com o espaço ao redor, bem como com o corpo do espectador.8 A interioridade aqui é reduzida a um grau mínimo. A paleta de cores não apresenta em si uma grande novidade, visto que são constantes desde o início de sua carreira (com a predominância do rosa carne, preto, amarelo, azul, cinza, branco, verde, bege, roxo, laranja e vermelho). No entanto, as cores ganham concretude e inteireza inéditas. Tornam-se diretas, imediatas, ostensivas. Simultaneamente matéria pura e sensação visual, passagem intermitente entre a percepção visual e a percepção tátil. As cores não deixam de estabelecer contato, instituindo um movimento permanente de determinação recíproca, apesar da completude que possuem em sua individualidade.

Na exposição, esse grupo de obras junta-se à série Bicromias (2014), na qual o artista reinterpreta fotografias conhecidas, transformando-as em composições construídas pela combinação de duas cores [pp.57–61, 150]. Se por um lado elas evocam o caráter reprodutível e anônimo do trabalho de Andy Warhol,9 por outro, explicitam a importância que a técnica desenvolvida com estêncil nas pinturas abstratas terá para a fase posterior de seu trabalho, quando o artista retorna à figuração, entretanto por meio da utilização de imagens pré-existentes.

No início de 2009, Rodrigo Andrade começa a realizar pinturas a partir de fotografias tiradas por ele. Essa volta à figuração marcaria uma nova fase do trabalho, em que a materialidade assertiva das pinturas anteriores fricciona a ideia de representação. O primeiro conjunto dessa nova leva de pinturas, a já citada série Matéria noturna, é exibido na 29ª Bienal de São Paulo (2010). São paisagens noturnas que remetem ao abandono e silêncio da cidade. Não há uma cópia da imagem, mas a incorporação do caráter mal-assombrado da noite na opacidade da matéria.

Em geral, o que se percebe nessas pinturas figurativas, feitas a partir de fotografias (autorais ou não) e de frames de filmes, é o questionamento da verossimilhança, restabelecendo‑se, agora por outra via, o jogo entre a ilusão e a densa massa de tinta. Curiosamente é também por meio da apropriação de imagens que o artista reencontra a História da Arte. Oswaldo Goeldi, Pieter Bruegel, Gustave Courbet, Camille Corot, Claude Lorrain, Nicolas Poussin, John Constable, Johannes Vermeer, Caspar David Friedrich, Claude Monet: reminiscências que ressurgem numa fotografia do Tsunami, de uma estrada para o litoral, fotos de viagens ou registros pessoais de locais familiares. De novo, aquilo que parece banal invade o espaço pictórico, num movimento tensionado com as convenções da pintura. Desta forma, tanto o ordinário quanto a convenção são deslocados. Afinal de contas, é essa região fronteiriça que o trabalho de Rodrigo Andrade quer habitar.
 
Taisa Palhares é curadora.

 

¹ “Entrevista Rodrigo Andrade x Tiago Mesquita”. In: MESQUITA, Tiago (org.). Resistência da matéria. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014, p. 51.

² Em 1977, Rodrigo Andrade começa a frequentar o ateliê de gravura de Sergio Fingermann, onde diz conhecer esses artistas. Nesse mesmo ano faz aula de desenho no Studio of Graphics Arts, em Glasgow, durante as férias, além de editar a revista Papagaio com amigos do Colégio Equipe, em São Paulo. Para essas e outras informações biográficas conferir “Cronologia”, ibid., p. 212.

³ No livro Resistência da matéria, Rodrigo Andrade organizou um caderno de “Notas visuais” no qual reúne o seu arquivo pessoal de imagens, estabelecendo aproximações entre seus trabalhos e o material visual que o alimenta. Ibid., pp. 196‑211.

4 Eu cito: “A dimensão do jogo é determinante na arte, em geral, e na pintura, em particular, pois a própria delimitação da tela já configura uma espécie de campo onde o jogo ocorre. Aliás, lendo o Homo Ludens do Huizinga, aprendi que a palavra ilusão significa, literalmente, ‘em jogo’ (inludere). A ideia cai muito bem para a minha pintura. […] O que me interessa é o espaço duplo que oscila entre ilusionista e não ilusionista, concreto, matérico. É o jogo a que me referi anteriormente. É isso que faz dessa pintura arte”, ibid., p. 51.

5 PALHARES, Taisa. “Espaços contaminados: a pintura como experiência de diferenciação”. In: Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

6 7 era o número da casa ocupada pelos artistas em uma vila em Pinheiros, São Paulo, onde Andrade tinha passado sua infância. Em 1983, Antonio Malta deixa o ateliê e é substituído por Nuno Ramos. A nomeação oficial do grupo ocorre em 1985, quando a curadora Aracy Amaral, então diretora do MAC-USP, organiza a exposição “Casa 7”.

7 Para uma compreensão detalhada dessa série, remeto ao texto fundamental de Alberto Tassinari “Figurações pelo outro”. In: Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 11-30.

8 Nota-se que a “abertura” dessas pinturas levou o artista a extrapolar o espaço da tela, realizando importantes trabalhos de intervenção como Projeto parede (Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, 2000), Lanches Alvorada (Lanches Alvorada, São Paulo, 2001), Paredes da Caixa (Museu da Caixa Econômica Federal, São Paulo, 2006) e Óleo sobre: intervenção no acervo da Pinacoteca do Estado (Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2010).

9 Cf. ensaio de Lorenzo Mammì “Diante do muro, atrás do horizonte”. In: MESQUITA, Tiago (org.), op. cit., p. 188.

 
Texto publicado originalmente no catálogo Rodrigo Andrade: pintura e matéria (1983-2014)/ curadoria e texto Taisa Palhares ; texto Michael Asbury. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2017. Exposição realizada na Estação Pinacoteca, de 9 de dezembro de 2017 a 12 de março de 2018.