Figurações pelo outro

Alberto Tassinari

 

1             Quanto mais singulares nos tornamos, quanto mais para nós nos voltamos, por nossas lembranças, nossos desejos, serenos ou agitados, o que quer que seja, mais dos outros somos feitos. Para um sociólogo, isso não é novidade alguma. Para um artista, porém, é preciso que crie, invente, até que, no ponto final, na obra pronta, o olhar do outro, desde sempre pressuposto, venha enfim depositar-se sobre o que, desde o início, a ele já se destinava. Mas também nisso não há novidade. O dom da arte é esse mesmo. O espectador recebe presentes que desfruta, se as obras valem a pena, como se fossem o dom maior, o dom da vida. Desta, temos pouco controle, inventamos uma história, tão coesa quanto possível, e apagamos, quanto der, os pecados originais, os outros que nos moldaram, a língua que falamos, a época em que nascemos… E tampouco isso é novidade.

2             Se a arte é feita para o outro, nem sempre seu assunto é esse. Muito menos o outro, como medida que nos conforma, costuma ser um tema evidente da arte. Que isso seja possível, que seja o tema por excelência da arte, por meio de uma pintura abstrata feita de dois ou quatro tijolinhos de massas de tintas coloridas sobre um fundo branco, isso sim é uma novidade. E uma das novidades mais felizes da arte brasileira da década que transcorre. Tudo é muito simples e ao mesmo tempo variado. Detém-se o olhar em uma das massas e logo outra ao lado começa a ser considerada pelas diferenças em relação à primeira. A primeira, assim, torna- se um padrão para a segunda. E é nesse ponto que as sutilezas começam a surgir. Tudo que na segunda difere da primeira salta à vista. E como tudo acaba por diferir, com exceção dos tamanhos próximos, uma marca é, desse modo, definida pelas discrepâncias entre esta e a outra.

3             Muito na arte, na sua apreciação, mesmo que não de maneira explícita, vem de comparações. Nas obras de Rodrigo Andrade feitas a partir do final de 1999 ocorre, porém, que as pinturas mesmas, de pronto, são comparações. Uma marca sempre é tomada como padrão para que as diferenças de outra se salientem. A escolha da marca que servirá de padrão, entretanto, é arbitrária. Medimos a da esquerda (ou a de baixo) pela da direita (ou pela de cima). Mas também o sentido oposto logo pode entrar em cena. O que era padrão passa então a ser o que é medido. E assim, coisa nem sempre considerada, assume a condição de outro do outro. Se a expressão “outro do outro” é um tanto abstrusa, descreve, porém, a sociabilidade da qual essas marcas são metáforas precisas. Pôr-se no lugar do outro é um exercício que, mesmo quando difícil, reiteramos ao longo da vida. Mais difícil se considerarmos que há sempre uma âncora na solidão, nos obstáculos que não controlamos; é ter-se como o outro que o outro nos desvenda. É algo raro, quase impossível. Contudo, como outro dom da arte é não o ser, mas o que poderia ser, é algo que o ir-e-vir incessante do olhar entre essas massas de cor tão semelhantes, tão próximas, mas também tão diferentes, deixa entrever.

4             É comum que um artista alcance o que há de mais inovador na sua arte transpondo para o interior de suas obras mais inventivas aquilo que antes só era perceptível pela sua trajetória. Se as formas que se dispõem nas pinturas de Rodrigo Andrade há cerca de dez anos encontraram uma espécie de sociabilidade, isso se deu ao mesmo tempo que o artista libertou-se de duas constantes de seu percurso: uma temática da solidão e as sucessivas influências de artistas de índole quase sempre expressionista. Uma coisa é mesmo afim com a outra. De acordo com o tema abordado – fossem acúmulos de objetos, colagens de materiais diversos, persianas, paisagens mais ou menos abstratas, peças de mobiliário –, um ou outro artista participava de um diálogo com as obras. O tema – de modo breve, a solidão – possuía, desse modo, na obra de um artista que funcionava como paradigma, uma medida exterior à obra, embora reinterpretada de modo livre e inventivo. A partir do final de 1999, porém, as pinturas de Rodrigo Andrade ganharam tal autonomia que as formas, de solitárias, passaram a ser relacionais, e o ir-e-vir entre obra e influência também foi ultrapassado pelo vaivém do aspecto relacional das formas. E o que há de extraordinário nisso é como sua pintura, que sempre foi direta, algo gráfica, ganha ainda mais com esse aspecto, exibindo um frescor e uma economia de meios inusitados nos dias de hoje.

5             Não é de todo correto chamar as primeiras influências das pinturas de Rodrigo Andrade de expressionistas. Descontados os anos de estudo e aprendizado, seus primeiros trabalhos, as pinturas em esmalte sintético sobre papel kraft, de 1984, foram mais influenciadas pelo neo-expressionismo de Lüpertz do que pelo expressionismo. O neo-expressionismo, porém, é um movimento da pintura contemporânea. Muito pouco tem do espaço expressionista de inícios do século XX. Movido pelo em tudo problemático revival da pintura – e que era mais uma contraposição à pintura (a qual nunca realmente deixara de existir para precisar voltar) minimalista –, o neo-expressionismo muito mais reciclava signos expressionistas – seus códigos, não sua poética – do que os criava. Algo das colagens pop, que também reutilizam signos, rondava o neo-expressionismo. Daí, talvez, a interpretação vivaz e leve, por meio do esmalte e do papel kraft, que Rodrigo Andrade – e seus companheiros da Casa 7 (Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Nuno Ramos e Paulo Monteiro) – deu daquilo que para a pintura alemã da época era grave e carregado de história. O sucesso súbito do grupo Casa 7, além do ambiente propício da “volta à pintura”, se deve em boa medida ao uso desses materiais sem pretensão e ao aspecto direto, quase gráfico, e comunicativo – do qual Rodrigo Andrade nunca abriu mão – das pinturas de então.

6             Além de Lüpertz, ou mesmo mais do que ele, a grande influência, em 1984 e 1985 – ano em que expõe na Bienal de São Paulo pinturas a óleo sobre tela, e não mais em esmalte sobre papel kraft –, das pinturas de Rodrigo Andrade é Philip Guston. Este, porém, com sua pintura refinada ao extremo, em contraposição aos temas repletos de violência e detritos, e algo alucinatória, era um modelo próximo demais de Rodrigo Andrade, com a mistura das experiências que tinha como desenhista de história em quadrinhos e estudante de arte. Tão próximo quanto distante. O Brasil não é a América (do Norte) e Guston, antes de sua singular pintura figurativa, era um excelente pintor abstrato. Que em 1986 as pinturas de Rodrigo Andrade se tornem abstratas, com colagens de papéis e pentimentos em forma de rasuras, diz muito do ambiente da jovem pintura dos anos 1980. De Lüpertz e Guston a uma espécie de junção de Rauschenberg com o novo realismo é uma virada e tanto. E nisso não há nada de modismo ou qualquer outra intenção não artística por parte de Rodrigo Andrade. A “volta à pintura”, cujos principais representantes em São Paulo eram os membros do grupo Casa 7, participava de um movimento mais amplo que se convencionou chamar Geração 80. Com exceção de Jorge Guinle, cuja obra já vinha dos anos 1970, quase todos os artistas da Geração 80 atingiram momentos mais autônomos na virada dos anos 1980 para os 1990. A melhor pintura dos anos 1980 continuava a ser a dos artistas da que poderia ser dita geração dos anos 50: Iberê Camargo, Mira Schendel e Eduardo Sued, para ficar apenas em três exemplos. Os artistas jovens atiravam um pouco para todo lado, pois, repentinamente reconhecidos, tiveram de constituir sua trajetória em público muito mais rápido do que é costumeiro.

7             Entre 1989 e 1997, as pinturas de Rodrigo Andrade ganham uma intensidade poética nova. As experimentações cessam. Já antes, em 1988, ele como que cava o quadro com tons leitosos, opacos, tentando extrair da pintura aquilo que ela pudesse dar sem nenhum subterfúgio, nenhuma influência, num jogo em que o artista estivesse só diante da tela e nada mais. Mas, assim sendo (não atribuo intenções, aqui, ao artista, mas ao que tento depreender das obras), essas pinturas dominadas, em geral, por um matiz (azulado, esbranquiçado, areia são exemplos) se fragmentam em gestos com várias direções e perdem, ainda que portadoras de uma beleza surda, o caráter direto, franco, de toda a trajetória do artista.

8             A interpretação anterior talvez esteja correta tendo em vista que, em 1989, Rodrigo Andrade realiza uma série de pinturas em que o aspecto gráfico (abandonado em 1988) retorna por meio de persianas coladas no quadro que servem de guia e contraponto para conjuntos de pinceladas mais nítidos e mais amplos. Tudo se passa como se pudéssemos ver, além do que as persianas deveriam ocultar, silhuetas de móveis, de seres na noite, de um reflexo do sol, pintadas sobre as persianas e não nos intervalos entre elas. Um pouco como Kiefer, que usava então as linhas de fuga de uma paisagem para aderir coisas sobre ela, Rodrigo Andrade toma como baliza as persianas dispostas horizontalmente. Não replica, como Kiefer, porém, adereços e outros procedimentos sobre o que é plano embora também perspectivado. Outro tanto como o Schnabel dos fins de 1970 e início de 1980, Rodrigo Andrade empastela as persianas sobre o quadro assim como Schnabel espatifava pratos e colava seus pedaços. Essa dupla interpretação dos que eram os dois melhores pintores da “volta à pintura” é, em tudo, apenas interpretação. Não se trata mais de influências. Mesmo porque a cor não é de nenhum deles. O pincelar também não, com suas tramas algo quebradiças de cores puras, desenhadas em linhas paralelas e irradiando sol ou noite sem que já se saiba se aquém ou além do entreabrir das persianas.

9             Os reticulados de faixas de tinta e cor que as persianas, por suas formas, criavam continuam entre 1992 e 1993, mas as persianas se ausentam das pinturas. Já não são mais necessárias, embora tenham ajudado a produzir uma série de pinturas únicas, em que o linear e o pictórico, o luminoso e o sombrio, o visto e o entrevisto se conjugam numa dosagem difícil de encontrar entre essas dimensões quase antagônicas. Esses aspectos, embora de um modo mais desarranjado, mas nem por isso menos potente e comunicativo, se intensificam nas pinturas de 1992 e 1993. De novo, há um alter ego artístico. Como os demais, não é casual. Porém, como nas pinturas de 1989, o artista mais interpreta do que se influência. Uma pintura que desenha enquanto pinta, e vice-versa, uma pintura, digamos, quadriculada, tem em Van Gogh seu mestre e seu inventor. E é assim, em paisagens entre figurativas e abstratas, não sem um corvo aqui e ali, em cenas oníricas em que o espaldar das cadeiras de Van Gogh vagueia, troca de cor, em que seus campos se verticalizam, vagueiam também, e em que noite e dia se confundem, que as pinturas se movem. Há uma beleza contorcida nessas telas, uma espécie de bate e rebate, como se precisassem andar de lado em um momento, de viés em outro, simplesmente se perder em mais outro, pois a conversa não é com qualquer um. São quadros tristes e ao mesmo tempo radiantes, e nisso há mais um tanto de Van Gogh. Mas há também a força que irradiam ou, ao contrário, a vagueza com que se deixam ir. Há a luta, sujeita a alguma vitória e muitos fracassos, para interpretar – e nisso os fracassos se igualam aos sucessos, como dois lados da mesma coragem – talvez o mais pleno dos pintores.

10           Nas pinturas de 1994 a 1997, o rastro de Van Gogh abandona a cena. É como se um périplo tivesse sido cumprido. Desde as primeiras influências neo-expressionistas, e que de expressionistas pouco tinham, como se viu, até o embate com a fonte de todo o expressionismo, o aspecto direto, gráfico, colorístico e comunicativo das pinturas de Rodrigo Andrade variou, e muito, fortalecendo-se cada vez mais. Retorna então aos seres solitários das pinturas de 1984 a 1986. O traço é trocado por grandes áreas de cor. E se ainda há traço, e há, é porque o contorno das coisas é delineado. As grandes massas coloridas, sem meias medidas, diretas como sempre, passam a moldar o quadro. São volumes, bagagens deixadas pelo caminho, quem sabe, seres na sombra, isolados, sós, e quanto mais juntos estão, mais sós. Algumas dessas pinturas são de uma simplicidade de composição extrema. Algumas áreas de cor, algumas coisas, e só. O mundo todo cabe nisso, e o mestre aqui é Goeldi. Mas não são gravuras ou desenhos. São pinturas amplas. Tudo está quieto. Nada quase comunga com nada. Tudo é só e só. E o caminho a seguir quem sabe seja abstrair essas formas. Ver no que dão.

11           Uma das coisas mais gratificantes para quem observa o caminho de um artista é assistir à transmutação do que, já sendo excelente arte, passa a um nível mais alto de invenção. Entre 1998 e o final de 1999, Rodrigo Andrade depura as formas goeldianas dos anos anteriores. Goeldi lhe deu o sossego, ainda que solitário, das coisas aquietadas. Sem saber no que vão dar, o pintor passa a simplificar essas formas. Elas são quietas. Elas têm lugar. São manobráveis. Não importa que uma mancha preta vertical mal lembre uma porta. Ou que dois cubos mal lembrem dois baús. As formas ocupam o mesmo espaço, isso é o que importa. Porém, não interagem. O artista as aplaina. Viram quadrados. E nada, ainda. Bóiam no espaço agora, como que sem a força que já tiveram. Um único cubo preto, então, é posto no espaço. Ele se assenta. Mas está só. Retorna-se aos quadrados. Tentam-se tons muito próximos, numa espécie de exacerbação de Morandi, para que também os quadrados, quem sabe, se comuniquem. E nada. Retorna-se aos contrastes. Também as formas ganham mais regularidade geométrica. Talvez seja o caso. Mas o que faz esse fundo violeta no quadro? Volta-se ao fundo pálido, à tonalização. Tudo é branco e cinza. Nada. A não ser um quadrado laranja na lateral da pintura, como se dissesse: contraste! Parte-se então de um fundo cinza-claro. Sobre ele, duas massas retangulares de amarelo. Aqui há algo. No amarelo sobre o cinza-claro, praticamente branco, há um contraste novo. Mas as massas amarelas ainda são solitárias. Que assim sejam? Sim. Porém o contraste do amarelo sobre o branco instiga. Ao contraste de uma cor sobre o fundo branco não seria o caso de acrescentar o contraste de uma cor em relação à outra?

E as portas se abrem. Tão desenhadas, coloridas, diretas e separadas, e, no entanto, agora as formas se medem umas pelas outras sem cessar. O grito de O grito, que reverbera por todo o espaço em ondas, emblema do espaço expressionista em que as formas se puxam e repuxam – diferente da outra matriz do espaço moderno, a cubista, em que as formas penetram umas nas outras –, encontra aqui uma versão inusitada: a forma amarela, quase retangular, de cantos em meia-lua é isso e mais aquilo porque se vê empurrada, repercutida na outra, e assim se compara com a forma quase quadrada, marrom, e com limite irregular. E para que, com os contrastes entre o fundo e as formas e entre as formas, se ganhe mais contraste ainda, as formas vão ganhando espessura. Destacam-se ainda mais do fundo e mais se diferenciam umas das outras, assim como o fundo passa a ser quase sempre branco, contrastante, adquirindo, ele também, a figura de um tablete sobre a parede. Enfim a vitória. E, como em um Mondrian, uma vitória que qualquer um conquistaria. Desde que fosse, é verdade, Mondrian.

12           Rodrigo Andrade não é Mondrian. Isso é certo, e não pretende sê-lo. Mas os grandes exemplos também servem, entre tantas coisas, para ser exemplos. E se penso aqui em Mondrian é porque Mondrian é um artista cujas composições também possuem formas relacionais, em que um quadrado amarelo assinala, enfaticamente, seu peso na composição, assim como esta é clara função de suas partes. Além disso, e sem afirmar, pois não é o caso, que Mondrian seja um expressionista, sua trajetória tem momentos expressionistas evidentes. Foi preciso o encontro com o cubismo para que o maior pintor construtivista do século XX começasse a investigar novas formas a partir do que já tinha em mãos. E o que tinha em mãos eram pinturas com forte simbolismo. Simbolismo do qual, num sentido amplo, nunca abriu mão. O uso apenas de verticais e horizontais e cores primárias para compor seus quadros, se hoje pode soar arbitrário, é sempre motivo para pensar duas vezes, pois quem escolhe o arbitrário não escolhe o básico. E aqui a comparação pode dar frutos.

Nas formas básicas e relacionais de Mondrian havia um ideal estético de uma sociedade em que as relações funcionais também vigorassem (e capitalismo e socialismo atendiam, ainda que em tese e de formas diferentes, a esse requisito). E, mais ainda, vigoras- sem também nas relações entre as formas sensíveis, e não apenas na racionalidade científica e técnica moldadora do mundo. A arte, nesse sentido, também moldaria o mundo. Nas suas reflexões sobre a arte moderna, as quais estou apenas parafraseando, Argan aprofunda esses temas. Mas se a situação mudou, se não é mais ao básico que devemos nos ater, não haverá perda e ganho nisso?

Entram os matizes, as formas oblongas, relações secundárias, diferenças pequenas. Sobretudo, pela espessura exagerada das massas de tinta, vêm habitar a tela coisas que sempre com ela foram coniventes, enfim, uma cor e seu veículo, mas aqui de um modo em que a tinta não pinta, ao contrário, coagula. Se seus limites tendem à regularidade, mesmo assim a massa de tinta se rebela, afunda, trinca, deforma-se, como se fosse pedaços de outro grito, não mais o grito expressionista da natureza como em Munch, e antes aqui aludido, mas gritos curtos, algo surdos, de seres já amalgamados de cultura e cujo emblema já não é mais Munch, mas o empastelamento das camadas de cor de Andy Warhol.

Tudo perde, assim, uma universalidade evidente, e tudo como que se apequena. Mas será apequenamento ou lucidez? De outra forma, como se mediriam, um pelo outro, um retângulo com borda irregular, de uma coloração de um salmão esbranquiçado, com um retângulo mais regular, de um laranja algo terracota e um tanto saturado? Bem, não passam de pelotes de tinta belos e estranhos, quase nada e, no entanto, plenos de diferenças. De minha parte, embora sejam pelotes quem sabe anódinos, mas também como se fossem seres estrangeiros que visitam e se agarram à tela branca, não canso de olhá-los, comparar e refletir sobre o que não é certo, se são defeitos ou qualidades.

E se a arte promete mesmo a felicidade, não canso então de refletir sobre quanto são felizes encontros tão contingentes. No lugar de um ideal construtivista que era ao mesmo tempo aspiração e crítica à sociedade, e segundo o qual seríamos exemplares de relações livres e universais (penso aqui, de novo, em Mondrian), o que a pintura de Rodrigo Andrade nos oferece é bem mais a figura do já possível e, assim, do que é contingente, ocasional. Nas suas pinturas de 1999 em diante, uma forma só existe na companhia de outra e na comparação que estabelece com ela. São outras uma da outra. Só nesse espelhamento existem. São mesmo, antes de tudo, esse espelhamento. Antes de cada forma, é o par que constitui as formas.

E são formas divergentes, diversas, que não são exemplares de nenhuma universalidade, mas partes, sempre partes, de um estar com o outro, este também uma parte. É mais por um encadeamento de seres e coisas que uma universalidade se insinua, aberta, nunca completa e dominável por um único olhar. O ideal de ser igual a algo é substituído pela possibilidade de estar junto a algo. O outro nos dá parâmetros que nos formam, assim como na trajetória do pintor entre 1984 e 1998. Na hora mais livre, porém, as identidades trocam propriedades sem cessar. Antes do si, do eu, há o emparelhamento, algo amoroso, como, talvez, em toda arte. Mas aqui, nessas pinturas, de um modo evidente, do qual nada é excluído, com suas idiossincrasias ou com suas qualidades. Já não importa o que é mais essencial ou mais acidental. O par vem antes (e essas pinturas só aceitam números pares). E a cor-de-burro- quando-foge encontra-se, enfim, em pé de igualdade com o azul mais puro e luminoso.

​Texto publicado originalmente no livro Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008.