Espaços Contaminados

a pintura como experiência de diferenciação

Taisa Palhares

 

No ano 2000 Rodrigo Andrade foi convidado a participar do Projeto Parede no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O desafio o consistia em intervir temporariamente no corredor entre o saguão de entrada do museu e a sala principal de exposição. Pela primeira vez, o artista se viu confrontado com a possibilidade de dar uma dimensão ambiental às pinturas com blocos de cor que vinha realizando desde 1999. O local, que servia ainda de passagem para o café e restaurante, era extremamente ruidoso. Andrade decidiu colocar dois pares de formas geométricas retangulares, de massas de tinta a óleo (rosa e laranja; vermelha e azul) diretamente na parede, deslocados de tal modo que, de frente, se tornavam visíveis de maneira parcial, assim como a partir do saguão de entrada ou do interior do café.

Mesmo que sua pintura já não se restringisse aos limites da tela, realizá-la na parede trazia novas questões. Assim tão próxima do espaço do espectador e em um lugar onde era preciso lutar pela atenção do passante, ela curiosamente assumia seu caráter de mais uma coisa entre as coisas, um caráter ordinário que Andrade parecia almejar também nas telas. Não era mais apenas dentro de um sistema visual puramente pictórico que os blocos monocromáticos de cores eram percebidos. De alguma forma, agora era preciso lidar com uma série de características físicas e culturais que na tela ainda podiam ser mantidas a distância. De par com isso, fazer pintura. Pois a materialidade dos blocos e a potência das cores e das relações entre elas deixavam bem claro que o desejo do pintor estava ali, condensado naquelas massas coloridas.

O procedimento inseria-se coerentemente na produção que o artista vinha desenvolvendo desde o ano anterior e que sugeria um processo de esvaziamento do campo pictórico. Com base em uma lógica binária, a pintura de Andrade se concentrava na exploração de um sistema relacional no qual placas de tinta eram aplicadas sobre a superfície branca da tela,¹ sem que uma composição prévia determinasse a localização. De espessuras diferentes, ora de superfície pegajosa ora lisa, a colocação parecia obedecer a uma ordem casual, impressão reforçada pelos deslocamentos, irregularidades e assimetria com que surgiam no espaço. Não sem certa ironia, era como se as pinturas respondessem à questão sobre sua especificidade de maneira simples e direta: a pintura se resume à matéria, à cor e à relação entre formas pouco expressivas sobre um anteparo neutro e nada mais. O procedimento, que segue uma regra comum básica, torna-se infinitamente diversificado na medida em que nunca sabemos como cores, por vezes tão alheias entre si, reagirão lado a lado. É a cor que singulariza, ou melhor, introduz diferenças infinitas nesse fazer padronizado.

A escolha da forma, que com o decorrer do tempo recai com freqüência sobre o retângulo (com variações de tamanho, volume e no desenho das arestas), também parece aleatória. Mesmo que seja possível reconstituir a trajetória de sua geometria na pintura de Rodrigo Andrade dos anos 1980 ou em momentos particulares de séries dos anos 1990, como forma em si ela não possui um valor especial. Sua reiteração e inexpressividade sugerem uma espécie de “forma ready-made”. Seu desenho é universal não por algum significado metafísico que possa conter, mas pela facilidade com que pode ser encontrado. O retângulo remete ao universo urbano, às telas de cinema e televisão, ao design gráfico, às formas modulares da indústria, às placas de sinalização e propaganda. Naturalmente, também pode ser associado, no âmbito restrito da história da arte, à abstração geométrica, ao construtivismo, ao minimalismo etc. Contudo, o artista se apropria dele como forma gasta, banal, e por isso em si não assume nenhum significado particular para a compreensão de seu trabalho.

Se essa forma geométrica não se apresenta como a medida de algo, sua presença na superfície da tela se justifica enquanto aquilo que plasma a cor. E é dessa presença ostensiva da cor simultaneamente como matéria e como sensação visual, do cruzamento entre a percepção tátil e óptica, que o trabalho retira parte de seu interesse. Pois não podemos deixar de pensar que, em um país cujo estabelecimento de uma tradição plástica se dá de maneira tão rarefeita, sobretudo no âmbito da pintura, tal ostentação não seja ingênua. Como artista que iniciou sua produção nos anos 1980, no momento da “volta à pintura”, e que continuou pintando a despeito de sua morte tantas vezes anunciada, o caráter afirmativo e de prazer vital desses blocos de cor fala por si só.

Por outro lado, mesmo antes de migrar para as paredes do museu, a produção de Rodrigo Andrade almejava a conquista de um espaço não mais restrito aos limites físicos da tela. A trajetória desenvolvida por sua pintura indicava a busca de um espaço visual que se concretizava, de maneira real e não apenas metafórica, pelo embate entre as formas no quadro e o corpo do espectador. Na esteira de uma corrente da arte contemporânea para a qual o espaço da obra de arte apresenta-se aberto, ilimitado fisicamente, o artista procura eliminar qualquer espécie de interioridade, restando a relação objetiva e corporal entre as placas de cor e sua percepção.

Sendo assim, seria natural que buscasse encontrar um espaço para essa pintura que não fosse mais aquele em geral destinado originalmente a ela. Seria preciso confundi-la com o mundo, para que nesse embate ela mantivesse sua identidade. Após a parede do MAM, Andrade realizou, em um boteco no bairro paulistano de Santa Cecília, o projeto Lanches Alvorada (2001). Sobre as paredes de azulejo do bar, ele instalou blocos de tinta a óleo em cores que se confundiam, apesar da discordância entre si, com elementos visuais bastante poderosos e característicos de um estabelecimento desse tipo: as tabelas de preços pretas com letras amarelas, as caixas de cerveja de plástico vermelho, a televisão pendurada próximo ao teto, as cadeiras de metal pintadas de vermelho, o azulejo antigo com desenhos rosa, laranja e amarelo. O que nas telas era uma relação entre cores, aqui se torna uma conversa mais ampla e contaminada.

“Pinturas decorativas”, alguns poderiam retrucar. Mas ocorre que a presença daqueles corpos de cor não era apenas bem-humorada. Havia algo que intrigava (o trabalho foi destruído em parte pelo desejo irresistível que provocava de tocá-lo). Se, por um lado, pareciam estabelecer uma relação quase mimética com o ambiente – e pode-se dizer que sua superfície adquiria, como que por osmose, o aspecto engordurado do bar –, em algum momento o elo era interrompido e se impunha uma estranheza, uma realidade que era concreta e ao mesmo tempo paralela, artificial.

A pintura não era absorvida pelo espaço; ao contrário, apesar da curiosa convivência, mantinha-se como um corpo estranho que mudava toda a relação que nós, fregueses, tínhamos com ele. Em primeiro lugar, ela potencializava visualmente nossa experiência. Depois era um outro tempo, a realidade constituída pelo diálogo visual que surgia entre as cores. O mais revelador, porém, é que a singularidade dos objetos no espaço e dos blocos de cor na parede se construía dentro desse sistema de contaminação. Como se o individual, a identidade, só fosse plenamente conquistado dentro do coletivo, do conjunto, em relações de proximidade e contraste entre as coisas, a pintura e a presença das pessoas no bar.

Em 2003, a contaminação do espaço da pintura pelo espaço exterior é trabalhada pela projeção da rua no interior da Galeria na exposição Passagem. Em um espaço retangular de 10,2 x 3,6 m, Andrade instalou nas duas paredes laterais, frente a frente, quatro retângulos enormes de tinta a óleo, que eram multiplicados pelo espelho localizado na parede do fundo da galeria. É preciso dizer que, situada em um bairro popular de São Paulo, a Galeria 10,20 x 3,60 tinha como característica principal sua relação direta com o espaço urbano, pois apenas um vidro separava seu interior da calçada. Andrade, então, resolveu potencializar essa relação entre exterior e interior por meio do espelho, que, assim como a tela branca na pintura, projetava o espaço da obra para fora, estabelecendo um vínculo intenso com o corpo do espectador e uma articulação estimulante entre os limites dos diferentes espaços (da pintura, do corpo, da galeria e do público).

Em Paredes da Caixa (2006), a mais recente instalação de Rodrigo Andrade, os mesmos blocos de cor de tamanhos, formas e espessuras diferentes são instalados em algumas salas do Museu da Caixa Econômica Federal. Como em Lanches Alvorada, trata-se aqui de explorar o vínculo entre a pintura e o universo dos objetos cotidianos, e não mais o espaço da galeria.

O Museu, cujo ambiente reconstitui a primeira agência bancária da instituição em São Paulo no final dos anos 1930, é caracterizado pela decoração pomposa e austera, em tonalidades de verde e vermelho, com paredes parcialmente revestidas de diversos padrões de madeira envernizada. Testemunho de um passado de riqueza e progresso do Estado de São Paulo, tudo aqui parece respirar outra realidade. É como se o passado estivesse preservado nos objetos e vives-se em suspensão no sexto andar do edifício, na área central da cidade. Espalhados pelas paredes, retratos em estilo acadêmico de personalidades marcantes da história do banco: nomes como o do imperador dom Pedro II, do presidente Getúlio Vargas e do jovem político Paulo Maluf. Os retratos convivem com grandes estantes de livros, mapas, cartazes, peças de mobiliário de época, máquinas de escrever, calculadoras e uma estranha sala de atendimento médico.

Apesar da total diferença em relação ao ambiente do bar, aqui os blocos de tinta que estão espalhados por diversas salas, e nem sempre são percebidos de imediato, também se relacionam de modo ambíguo com o lugar. Certamente introduzem, com sua presença marcante (os maiores retângulos, colocados na sala da presidência, medem entre 110 x 180 x 2 cm e 175 x 215 x 4 cm), espécie de força vital nesse local congelado no tempo. Eles também são percebidos como corpos intrusos, mas simultaneamente encontram-se muito à vontade no espaço.

Para o espectador é quase impossível abstrair a peculiaridade do lugar e se concentrar “na pintura”. Quase de maneira inconsciente, o olhar é lançado às salas com intuito de achar alguma similaridade entre as cores escolhidas pelo artista e os objetos encontrados no espaço. Como se uma subordinação indicial entre os elementos físicos do museu e a pintura pudesse fornecer a chave do enigma. Se, por um lado, ela é reativa à qualidade pictórica dos objetos e dos revestimentos (que há muito perderam sua vida útil para se tornarem peças de antigüidade), por outro, a relação entre os blocos de tinta mantém-se autônoma, não se resumindo a possíveis vínculos espaciais.

Essa passagem física contínua entre dois universos, a tentativa de fruir da cor como algo autônomo – experiência puramente estética, desvinculada do espaço circundante – e, ao mesmo tempo, a atitude incontrolável de procurar na sala outros elementos reagentes e ativa- dores da relação entre as massas coloridas, ampliando dessa forma o campo de reverberação, revelam a potência da intervenção de Rodrigo Andrade. Novamente aqui temos as permutações entre blocos retangulares e monocromáticos, de um lado, e o local (museu), de outro, os quais, vistos em conjunto e em constante ação, se a firmam individualmente. O tecido de relações que eles criam propicia uma abertura a novas significações.²

Em paralelo à produção de pintura sobre tela, essas breves instalações pictóricas (ou pinturas ambientais) buscam tensionar a fronteira entre a experiência da arte e a percepção do mundo (e, diga-se de passagem, não como exercício formal). Evidentemente, desde o princípio

Rodrigo Andrade não questiona a potência individual de suas massas de cor. Contudo, essa certeza não autoriza que, num gesto prepotente, elas existam como unidades ideais. A libido, energia motriz de toda ação, encontra-se plasmada nessas formas geométricas à espera de um detonador. O contato entre elas e o entorno ativará essa energia. O resultado é um curioso processo de singularização que se dá por meio de troca e contaminação. De certa forma, esses blocos reabilitam o espaço cotidiano, no qual prevalece uma experiência limitada e algo empobrecida do mundo, trazendo a força de uma experiência mais vital. Ao distender as fronteiras de sua pintura, Rodrigo Andrade assume um risco. Tudo poderia resultar em puro efeito decorativo, caso não se acreditasse na possibilidade de diferenciação.

¹ Em um primeiro momento, essa superfície poderia receber alguma cor, como cinza ou azul, que funcionava como fundo. Contudo, tal procedimento parece ter sido pouco a pouco abandonado, predominando as telas preparadas em branco.

² Rodrigo Andrade explorou uma possível interpretação do trabalho no curta-metragem Uma noite no escritório. Com base na instalação Paredes da Caixa, ele realizou um vídeo que conta a história de um funcionário exemplar, um diretor ambicioso de meia-idade (dr. Wilson), interpretado pelo próprio artista, que começa a sofrer de uma desconhecida “moléstia nervosa”. Associando a pintura Office at night (1940), de Edward Hopper, ao Museu da Caixa, o filme desconstrói, de maneira extremamente cômica, todo o realismo inspirado pelo ambiente do museu, tomando os blocos de cor como seus protagonistas.
Em uma noite de serão, dr. Wilson começa a ter alucinações que colocam em perigo “uma carreira exemplar”. De repente, esse dedicado e responsável funcionário passa a se comportar de modo estranho, após ver “formas, cores e matéria”, ou seja, “abstrações”, em locais inusitados (nas paredes, no telefone, no corpo dos outros funcionários). O fantástico, o desconhecido e o desejo reprimido, representados por essas massas de cor, irrompem enfaticamente como uma espécie de mundo paralelo que ameaça a realidade padronizada e bem administrada do diretor; um universo subterrâneo ou inconsciente que reclama também seu direito à existência.

 

Texto publicado originalmente no livro Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008.