Escritórios soturnos/Contextos mentais

Rodrigo Andrade

 

Ao folhear casualmente um livro do artista norte americano Edward Hopper, me deparei com a pintura, Office at Night, de 1940, que me chamou a atenção pela sua semelhança com o ambiente do Museu da Caixa. Mesma época, mesmo clima soturno de trabalho. E ainda com essa secretária de azul. Então apliquei dois retângulos de tinta a óleo em cima da página cortada do livro, fazendo assim uma pintura. Muda o suporte – nem tela nem parede – mas a operação é a mesma. Está reproduzida na página ao lado em escala real, e dá pra ver bem a tinta, as rebarbas azuis em forma de antenas de caracol.

Esse encontro me fez pensar num aspecto figurativo dessa obra que fiz no Museu da Caixa, pois ela é formada inclusive pelo ambiente que serve de suporte. E o lugar é tão carregado de figuras e sentidos, tão propício a imaginações. Suas salas antigas nos remetem a outra época, com pessoas já mortas trabalhando ali, vivas. Pessoas cujos retratos a óleo estão espalhados pelas paredes do museu. Podemos imaginar um desses funcionários atrás de sua mesa na sala da diretoria, falando naquele telefone, tratando com a secretária, o cliente, andando pelos nobres e sombrios corredores e, ao se deparar com o espelho da sala do conselho, vê sua imagem refletida, mas uma imagem diferente da que ele conhece, uma imagem estranha. Uma secretária de azul se abaixando para apanhar na estante um livro de atas, ou sendo examinada na mesa ginecológica na sala do atendimento médico.

Contudo, o trabalho é figurativo em termos, pois ele é basicamente operacional. Ele simplesmente incorpora o ambiente por meio de marcas feitas na parede. E se por um lado o retrato do senhor de bigodes absurdos faz parte da obra, por outro não faz, porque continua sendo apenas uma pintura que pertence ao mundo do museu. São dois mundos – o da obra e o do museu – que ocupam o mesmo espaço, mas tão diferentes entre si que não se confundem.

Me lembra o exemplo do teórico E.H. Gombrich de como os contextos mentais participam da percepção, quando ele diz que, ao olharmos um desses livros de zoologia, com suas páginas repletas de imagens de diferentes tipos de bichos, retratos em diversos ângulos, não nos confundimos porque sabemos que cada ilustração tem um espaço autônomo. Um homem de uma civilização diferente da nossa, por exemplo, cuja cultura visual e simbólica pressuponha outro contexto mental, não naturalista, poderia não enxergar nada numa página dessas. Ver é um fenômeno psicológico de interpretação, baseado na experiência e no conhecimento adquirido e, portanto, inseparável da cultura. (Não há aquele caso do homem cego que passou a enxergar e enlouqueceu, pois o mundo para ele se tornou insuportavelmente caótico? Ele teve seu aparelho ótico restaurado, mas não “sabia” ver).

Na Caixa, a obra se difere tanto do museu que alguns visitantes desavisados nem sequer percebem, não a vêem. Mas é preciso que ela se destaque do ambiente para que a junção aconteça. Uma pintura naturalista, como a magnifica Office at Night, tem um espaço único e pleno. As que fiz no Museu da Caixa não. Nem a que fiz com a página do Hopper. Só que no museu as massas de cor não ficam nem na frente, nem em cima, estão dentro do labirinto.

 
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição. Rodrigo Andrade: Paredes da Caixa. São Paulo: Caixa Cultural São Paulo, 2006.