Entrevista Rodrigo Andrade × Tiago Mesquita

 

No primeiro semestre de 2014, encontrei Rodrigo Andrade algumas vezes para conversar sobre o seu trabalho mais recente. A entrevista é o resultado desses encontros.

Cronologicamente, tratamos do que mudou em sua pintura desde 2009. Falamos sobre ilusão, do diálogo do artista com questões contemporâneas e tradicionais, seus temas, e de como essas pinturas recentes se relacionam com sua trajetória. A entrevista é dividida em diferentes blocos, referentes às séries de pinturas que abordamos em cada um deles. Neles, nos detemos nas questões que os trabalhos específicos sugerem.

 

T             A sua pintura figurativa trabalha com a tinta densa, contornada e concentrada. Um tratamento que você já usava, desde 1999, nas pinturas abstratas. A forma é massuda, a cor, além de grossa, tem peso. Nas pinturas mais recentes, esse peso é o assunto. Quando e como a matéria ganha importância em sua pintura.

 

R             Desde o período da Casa 7¹ minha pintura tende a acumular matéria. Acho que o interesse veio de um desejo vangoghiano de enxertar realidade na imagem, um desejo alucinatório de fazer uma pintura de paisagem tão concreta quanto a paisagem real, do mundo. No entanto, nas pinturas que fiz até os anos 1990, a matéria se espalhava por toda a superfície. A tendência era expansiva. Nas abstratas, ela se contraiu, ficou concentrada naqueles blocos fechados, bem delimitados pelo estêncil, o que fez com que o volume se exacerbasse.

O Alberto Tassinari faz uma comparação muito feliz: coloca de um lado a minha pintura, e de outro O grito, do [Edvard] Munch. No Munch, a forma reverbera o gesto do personagem. O grito deforma toda a pintura. O que faço seria o contrário, seria um grito que não se expande, fica contido. Por isso, a matéria é mais mórbida, de uma cor artificial, e guarda semelhanças com Andy Warhol. É nas abstratas que o trabalho ganha o caráter que tem até hoje.

 

T             Como se deu a passagem das pinturas abstratas para as telas ilusionistas e escuras mostradas na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010?

 

R             Eu me sinto condenado a um movimento constante. Algo meio picassiano. No meu percurso fiz várias mudanças radicais, rupturas. Desde a grande guinada ocorrida logo em seguida à Casa 7, e até antes disso. Dá para falar num movimento pendular, ou circular, entre figuração e abstração, mas as questões retornam sempre em outro nível, como numa espiral. Seja como for, não sou um artista da depuração, que fica refinando os procedimentos e o repertório, como o Paulo Pasta, por exemplo. Meu processo é menos contínuo, por isso o momento forte da minha pintura é quando encontro uma forma nova de pintar. Procuro muito mais a descoberta e a habitação do território do que propriamente uma depuração.

No caso atual, essa passagem não foi gradual como a transição entre as figurativas e as abstratas no fim dos anos 1990, pois não abandonei as abstratas pelas figurativas. Eu continuava a trabalhar nas pinturas abstratas, mas percebia que o procedimento se esgotava. Estava com uma disposição para a mudança, com vários caminhos possíveis. Além das primeiras tentativas figurativas, cheguei a fazer umas experiências com palavras, por exemplo.

A proximidade com pintores bem mais jovens, como Ana Prata, Bruno Dunley, Marina Rheingantz e Rodrigo Bivar, que já surgiram dentro desse universo de imagens fotográficas, também me animou a enfrentar a mudança e tornou esse território mais familiar.

 

T             Você passou da sua fase menos ilusionista para a, de longe, mais ilusionista. Em 2008, sua pintura lidava com formas muito simples e relações diretas. Eram as massas retangulares ou circulares sobre uma superfície chapada. Na Bienal de 2010, as imagens são fotográficas, dotadas de perspectiva. O que te levou a trabalhar com a ilusão nesse momento?

 

R             Havia um desejo de figuração irresistível, de criar símbolos reconhecíveis e que tivessem, talvez, algo de narrativo. De fato, fui de um extremo ao outro, mas, enquanto fazia as pinturas abstratas, costumava a pintar paisagens de observação como uma brincadeira. As pintava ao ar livre, à la [Jean-Baptiste Camille] Corot, digamos assim, retomando um velho hábito pós-adolescente. Nesse momento, eu quis trazer o que era distração para a produção artística; trazer essa espécie de puro prazer para o corpo do trabalho.

O que abriu um campo de possibilidades foi o fato de começar a trabalhar com a fotografia. Eu nunca havia fotografado, sempre fui um completo nó-cego com a máquina. Em 2006, comprei uma câmera. Levei para uma viagem e fotografei espaços, ambientes, paisagens e muitas noturnas com flash. Não eram imagens da viagem, mas dos lugares. Armazenei-as no meu computador, sem saber que aquilo viraria pintura… Bem, talvez eu soubesse.

No começo de 2009, decidi fazer pinturas baseadas naquelas fotografias. Escolhi as imagens noturnas, e passei a procurar outra coisa na pintura. Nas abstratas, acho que eu buscava um “fundamento” da pintura: tinta sobre tela, num esquema mínimo de dois elementos capazes de estabelecer uma relação. O jogo, nesse caso, era de regras sumárias. Uma pintura fundamentalista. Pois bem, acho que as pinturas figurativas também tentam manter essa ortodoxia de procedimento, mas em outro jogo, aquele da ilusão e sua crítica. Trata-se da oposição entre plano e matéria e a imagem, algo essencial na nossa tradição. O contraponto entre o que é físico, no fazer dessa forma de arte, e o que há de imaginário — ou imaginativo — na ilusão.

A dimensão de jogo é determinante na arte, em geral, e na pintura, em particular, pois a própria delimitação da tela já configura uma espécie de campo onde o jogo ocorre. Aliás, lendo o Homo ludens, do [Johan] Huizinga,² aprendi que a palavra “ilusão” significa, literalmente, “em jogo” (inludere). A ideia cai muito bem para a minha pintura. Seja como for, a ilusão tem um poder de fascinação natural, uma espécie de hipnose perceptiva que causa um prazer imediato no espectador, e essa relação de atração sensorial me interessa.

 

T             Existe, de sua parte, alguma curiosidade literária na escolha de tema da noite? Ela derivaria de algum sentido romântico atribuído à noite ou às suas frequentes associações com o horror, o medo?

 

R             Eu já fui um aficionado por filme de terror e já fui um notívago inveterado. Ainda me sinto atraído pela quietude e pela solidão da noite. Os objetos, à noite, talvez pareçam mais fora do seu habitat cotidiano e natural. E exista alguma suspensão da vida à noite. Talvez alguma metafísica da noite me pegue. E gosto muito das marinhas noturnas do [James Abbott McNeill] Whistler, além do [Oswaldo] Goeldi, que é tão soturno…

 

T             Esses sentidos vêm mais da forma pela qual você ordena os seus trabalhos do que das imagens em si. Que tipo de modificação você imprimiu na imagem fotografada ao pintá-la?

 

R             O espaço enegrecido ficava mais profundo e aquela imagem prosaica de uma cena de rua de noite ganhava um estado alterado. Há um segundo espaço no interior da imagem. A imagem em si aponta para o fundo da tela, como uma vista enxergada através da janela, mas a tinta se projeta em nossa direção. É o seu peso que parece colocar a ilusão em jogo. É possível, então, ver algo além da imagem virtual.

 

Sem a presença da espessura da tinta e do procedimento com o estêncil, a pintura ficaria muito submissa à imagem. Precisei de algo que a deslocasse e a tirasse dessa condição. Para virar pintura, a imagem pedia presença física mesmo, presença corpórea, para não cair na mera banalidade pictórica da imagem convencional.

As imagens ganharam certa complexidade espacial. Existe, ao mesmo tempo, um espaço concreto, planar, que é da matéria sobre a superfície, e outro que é o da ilusão. A escuridão da massa de tinta alisada pelo rodo se prestou a criar uma zona de indefinição, onde esses dois espaços podiam acontecer alternada ou simultaneamente.

Penso sempre na concepção espacial do Jasper Johns. Ele fala de “um espaço dentro do outro, um espaço sobre o outro, um espaço ao lado do outro… o que emerge num caso, o que desaparece no outro”.³

Minha pintura também faz conviver dois espaços. Eu não sei se é um sobre o outro ou um ao mesmo tempo que o outro. O espaço da ilusão se forma para o espectador com nitidez, mas, ao chegar perto, esse espaço se desfaz e surge o plano. Vemos a matéria, os sinais da pintura. Mas isso não desfaz a ilusão. A duplicidade espacial permanece. É uma ambiguidade. Assim, o trabalho não descrevia só uma paisagem, mas também a matéria que moldava a pintura ilusionista. A ilusão é desmentida pelo anteparo que não é só o plano da tela, é a matéria que se projeta não para o fundo, mas na direção de quem olha.

 

T             A ilusão tem um estatuto muito negativo no pensamento, é tratada como parente do enganoso. Essa rejeição é de matriz platônica. Você não parece lidar com a ilusão como algo que necessariamente produz o engano.

 

R             Não. É no sentido de uma imagem que não tenta iludir. Talvez por isso, se a minha pintura ficasse somente na ilusão, perderia inclusive o que ela tem de específico e forte, que é a sua carga pictórica. Fosse só ilusão, melhor seria ir ao cinema. O que me interessa é o espaço duplo que oscila entre ilusionista e não ilusionista, concreto, matérico. É o jogo a que me referi anteriormente. É isso que faz dessa pintura arte.

Aliás, interessante esse “estatuto negativo” da ilusão. No Doutor Fausto, de Thomas Mann, o Diabo fala para o compositor Adrian Leverkühn que a música não tem mais a liberdade do puro jogo, como tinha antes. O livre jogo pressupunha convenções estabelecidas, e essas foram embora com a modernidade. Para o personagem do livro, a essência da música era a crítica. Esse discurso do Diabo vale perfeitamente para a arte moderna e as vanguardas dos anos 1960 e 1970.

Nos tempos atuais a própria crítica — seja da arte, seja do mundo — tornou-se parte do jogo da arte e, assim, passou a ser mais convencional. Mas isso não é algo a se lamentar, somente. Hoje, a liberdade da arte também vem daí. O jogo pode ser qualquer um. Cada artista escolhe e cria as convenções que lhe aprouver. Há nisso uma liberdade inédita na história da arte. Antes da arte moderna, as convenções eram preestabelecidas. Depois, na época das vanguardas, era dever da arte quebrar as convenções. Agora nem temos as convenções como receituário ortodoxo nem precisamos quebrá-las, quebramos se quisermos.

 

T             Faz pensar essa relação da pintura com as convenções. Você lida com os próprios clichês da linguagem e os coloca em uma situação crítica. Por que você escolheu temas tão próximos do clichê?

 

R             As primeiras cenas noturnas que pintei eram ruas desertas, uma calçada, um viaduto, uma grade, a beira do mar, as luzes da cidade, a água batendo nos rochedos; lugares totalmente insignificantes em si. As imagens, a princípio, vulgares. Há clichê maior do que as ondas que quebram na beira-mar? Mas acho essa banalidade das cenas parte fundamental na construção da minha poética. São espaços sem local, ordinários. A beira do mar é genérica, a estrada é genérica. A insignificância dá anonimato à paisagem.

 

T            Na exposição seguinte, Velha ponte de pedra, você parte de outro imaginário. Saem de cena os motivos cinematográficos, urbanos, e algo relacionado ao procedimento técnico também se mostra diferente. O que mudou?

 

R             Durante a Bienal, tive a certeza de que faria, a partir de então, pinturas ainda maiores. Percebi que essa pintura segurava sua tensão entre matéria e imagem quanto mais mantivesse sua relação física com o espectador. E assim eu aumentei o tamanho das telas. As pinturas que passei a fazer quase tinham uma continuidade com o chão da galeria. Assim, aquela estrada [pp. 58-59] com mais de três metros e meio de largura ficava quase do tamanho da estrada real. A pintura passou a ser maior que o espectador, quase cenográfica. Ao mesmo tempo, a violência e a materialidade da tinta se impõem de modo mais pronunciado. Sobretudo porque a camada de tinta ganhou espessura maior.

Também, pela primeira vez, fiz pinturas que não eram de noite, eram paisagens ao entardecer, sob a penumbra, numa luz indefinida. Começaram a surgir algumas luzes, algumas cores passíveis de serem transformadas em matéria espessa. Penso naquela Ponte sobre riacho ao entardecer [pp. 60-61]. Antes, a camada de tinta grossa tinha uma só cor, o preto, numa só passada de rodo, mas agora a situação pedia que eu incluísse mais cores na camada de tinta que eu alisava e aplainava com o rodo, ainda numa só passada (mais tarde comecei a fazer pinturas com várias passadas de rodo). Embora descrevesse a luz e a atmosfera, a camada de tinta tinha um colorido mais diverso. Poderia haver até umas três ou quatro cores na mesma massa de tinta: o verde-azulado do fundo da mata, o preto da sombra, o marrom-esverdeado do reflexo da vegetação na água.

 

T             Nesse período, todas as pinturas foram feitas a partir de imagens fotografadas por você? Você já fotografava pensando em fazer das fotos pintura?

 

R             Todas. E mais ou menos no meio da produção da Bienal, comecei a produzir imagens sabendo que elas se transformariam em pinturas. Eu já fotografava pensando na pintura que elas podiam render. Até então, usava imagens que eu tinha feito sem saber muito para que serviriam.

Quando eu comecei essa fase de pintura fotográfica, imaginava que poderia me esbaldar com o mundo das imagens à disposição, como tantos pintores atuais, mas não foi isso que aconteceu. Apenas as fotos feitas por mim, com as quais guardava uma relação pessoal, viravam pintura. Busquei imagens de coisas conhecidas. As primeiras dessa série foram as de beira do mar [pp. 32-33]. Quis fazer uma beira do mar de noite, fotografar a espuma surgindo da escuridão. São temas com uma longa tradição romântica. Fui para Ubatuba, fiquei uma noite inteira fazendo dezenas, centenas de fotos, até uma dar certo. E, num certo momento depois da Bienal, tive a ideia de fazer a ponte de pedra, a Velha ponte de pedra.

 

T             Por que as pontes de pedra?

 

R             A inspiração foi uma pintura que eu havia feito nos anos 1980, para o projeto Arte na rua. Na época, fui chamado pela Aracy Amaral para pintar um outdoor. Curiosamente, fiz uma ponte de pedra destruída. Um tema bem afinado com a transvanguarda dos anos 1980. Na verdade, era um tema da pintura kitsch, da pintura vulgar, e eu também tinha na memória uma coisa que sempre gostei: a pintura de parques de diversão, de trem-fantasma.

 

Lembrei-me de tudo isso e achei que o tema renderia. Fui procurar na internet, coloquei “velha ponte de pedra” ou “old stone bridge” e, para minha surpresa, em vez de fotos de ponte de pedras, apareceram imagens de pinturas de 49 dólares.

 

T             Alguma boa?

 

R             Não, todas pavorosas. Era uma coisa cômica. Mas me surpreendeu o alcance do clichê. E confirmava a velha inspiração dos anos 1980. Fui atraído por esse imaginário ordinário. A feiura daquelas pinturas me estimulou ainda mais a fazer a minha ponte de pedra. Era tão banal. O tema pertencia a uma cultura muito barateada. Fui atrás das fontes e descobri pontes bem interessantes. Muitas eram na Escócia e eu tenho uma história pessoal com a Escócia, onde meu pai morou sete anos durante o exílio, então decidi rever o país que visitei constantemente na adolescência e alugar um carro para fotografar pontes de pedra pelo país. Descobri lugares lindos, com pontes pitorescas do século XVIII.

O trabalho implicava uma produção maior para realizar as imagens que serviriam como modelo para as pinturas. A partir das fotos, fiz cerca de cinco pinturas de pontes de pedra. Também pintei as estradinhas com aquele cenário meio feérico e, ao mesmo tempo, meio mal-assombrado.

 

T             Você acha que o olhar de turista para aquela paisagem interfere na constituição dessas imagens?

 

R             Não sei. Sim e não. Claro que as fotografias de viagem são feitas em um estado de disponibilidade para a contemplação. Embora no meu caso essa disponibilidade para a

contemplação tivesse um propósito produtivo. Tratava-se de unir o útil ao agradável, ou melhor, unir o agradável ao agradável. Além do mais, todos os lugares onde fui colher imagens guardam relação com a minha história pessoal: Escócia, Ubatuba, São Paulo, Morro da Garça. Embora exista a situação de ócio, o que me interessa é o que é familiar. Não vou para esses lugares me surpreender.

Eu já tinha a imagem da ponte de pedra pensada, a beira do mar e a estrada também. Eu acho que a questão é trazer lugares conhecidos ou cenas banais para algum estado alterado da pintura. A partir dela, apagar, inclusive, as relações afetivas. Elas não estão no resultado da pintura. O que interessa nos temas é o que eles têm de convencional. Não havia desconhecido. Qualquer desconhecido só podia surgir pintando no meu ateliê.

 

T             Engraçado que o procedimento é quase o oposto da pintura de observação direta. Você vai à natureza à cata de uma imagem e tenta aproximar essa imagem de uma espécie de modelo de criação espacial pictórica, um modelo de representação pictórica, então, na verdade, você está pintando também um modo de fazer pintura.

 

R             Exatamente! Busquei nessas pinturas uma impessoalidade. No modo de fazer também, por mais gestualidade que houvesse. A ideia era preservar uma relação de neutralidade com a imagem.

 

T             Agora, a pintura também muda. Como se modifica o uso da tinta, do estêncil? Aqui a parte pintada pelo pincel parece se distinguir ainda mais da massa grossa e opaca de tinta alocada na tela pela técnica do estêncil.

 

R             A pintura é bem diferente. A fatura do pincel nos trabalhos da Bienal era propositadamente mais impessoal e descritiva, era quase que uma pintura de engenheiro. Eu procurava uma pintura neutra, com a maior fidelidade possível à fotografia.

 

T             Era a descrição mais próxima que você conseguia.

 

R             Isso, mesmo que com uma pincelada bem aparente, eu tentava capturar a espuma do mar, por exemplo, tal qual eu via na imagem. Não era por uma questão de excelência técnica, mas por uma espécie de neutralidade em relação a escolhas pessoais. Nas pinturas que mostrei na Milan4 houve essa mudança [pp. 54-87]. Comecei a dar mais importância à pintura propriamente dita. A matéria, a escuridão já não eram o único assunto. Pintei a vegetação com um ataque mais direto. Eu projetava a fotografia na tela, mas pintava de maneira mais veloz.

 

T             Como era feita a passagem da imagem para a tela, tecnicamente?

 

R             Eu riscava em cima da fotografia projetada sobre a tela.

 

T             E você marcava a cor?

 

R             Não. A cor era no olho. Na exposição Velha ponte de pedra, continuava esse procedimento de projeção, mas na hora de pintar, diminuiu o rigor. Em um momento eu falei: “Bom, vou pegar um pincel grande e largo e, enfim, ter menos pruridos em relação à imagem.” A pintura pincelada apareceu um pouco mais. Quando deixei de usar o projetor, aí o procedimento mudou mesmo. Simplesmente olhava a fotografia e pintava como se fosse uma observação da natureza. Claro que não é igual, é totalmente diferente, mas a partir de certo ponto das pinturas de estrada, eu deixei de usar o projetor.

 

T             Você não projeta mais?

 

R             Não projeto mais. Deixo um pouco que as distorções do meu modo de distribuir as coisas de certa maneira, enfim, estejam ali na pintura.

 

T             Eu me lembro de que na exposição havia usos distintos da massa de tinta, na pintura do estúdio de gravação [pp. 78-81], na máquina de fliperama [pp. 70-73]. Ela começa a distinguir a natureza dos objetos?

 

R             É verdade, você tem toda a razão. A matéria é usada para pintar a escuridão, mas também na criação da textura da madeira, para o fio do cabo do instrumento, no fundo para tudo que fosse preto: sombra, objeto etc.

Ela trata de reduzir as diferentes coisas à mesma matéria: a tinta. A imagem é ilusão e é matéria. Assim, aquela pintura anônima parece ganhar uma complexidade maior, algo entre a imagem e o objeto.

 

T             Os temas reforçam o aspecto bruto da tinta preta?

 

R             Os temas que uso são, em parte, aparentados dos temas de pintura da Praça da República, e já foram temas da pintura de ponta do século XIX. Tenho a impressão de que o [Gustave] Courbet foi quem inventou pintura de onda quebrando, acho que foi ele quem emplacou esse clichê.

Outro dia, me dei conta que é possível ver a minha pintura como uma espécie de elo, de continuidade entre a pintura mais rala e vagabunda da Praça da República e o Jasper Johns, que é o máximo de qualidade, de sofisticação, de tudo. Há uma vontade de colocar a pintura dentro de um âmbito que não está restrito à grande arte. Uma espécie de utopia democrática.

Penso que minha pintura lida com questões da arte que são complexas, sofisticadas e tal, mas a partir de imagens que guardam algum parentesco com pinturas  e imagens vulgares.

 

T             A tradição aparece como assunto frequente no seu trabalho. Como ela informa as pinturas ilusionistas?

 

R             A minha vontade de fazer pinturas nasce muito das pinturas que eu já vi. Tenho uma relação visceral com a arte tradicional. Sou capaz de passar horas e horas dentro de um museu, por vários dias seguidos, quando viajo. Tenho mania. Para mim, as pinturas antigas são carregadas de atualidade. Por mais que elas tragam as marcas do seu tempo. E se a paisagem, enquanto gênero, é basicamente pré-moderna, eu tento na minha pintura, de alguma maneira, torná-la atual.

 

T             Dois aspectos se modificam nesse trabalho da Maria Antonia:5 Um é o modo de colocar a massa de tinta, ele parece estar ora mais contornado, ora quase sem recortes, e a outra é o colorido. O que muda?

 

R             A exposição da Maria Antonia é composta por três grupos mais ou menos distintos: as pinturas de estradas brasileiras, as paisagens com neve e as vistas aéreas. Sozinha, também havia uma praia deserta, que estava pronta antes de eu começar essas pinturas menores.

Aqui, eu já pintava sem projeção. O meu primeiro interesse foi atribuir maior versatilidade à massa de tinta. Ela podia ganhar outras cores, que não só o preto da escuridão, e também entrar em situações variadas, não só como a profundidade que perdia a definição, mas também como a sombra, ou às vezes como o próprio volume das árvores, da neve etc. Existe, assim, uma liberação da cor e da própria matéria, embora a massa de tinta ganhe um papel menos estruturante.

Muitas vezes eu começava a pintura passando a massa de tinta, sobretudo nas paisagens de inverno e vistas aéreas, contrariando o procedimento até então, que era de apenas concluir as pinturas com a passada do rodo sobre a massa de tinta. Essas pinturas eram feitas a partir dessa primeira camada de tinta grossa. A pintura com pincel era feita sobre uma cobertura cremosa, ainda molhada. Depois, ao final, outra aplicação de massa de tinta, agora com o estêncil, vinha, aí sim, concluir as pinturas.

Nessas telas, todas diurnas, havia também um desafio tonal. A escolha da tonalidade de cada coisa precisava compor com todo o resto da pintura. Por exemplo, o azulado do branco da neve precisava estar certo. Nas pinturas de vista aérea, via-se na massa de tinta apenas o dégradé da passagem da terra para o céu. Ele se esbranquiçava e perdia o viço em direção ao horizonte. O desafio era manter essa coerência tonal com o que havia de ilusionista nas pinturas, numa só passada de rodo.

 

T             Isso era um critério de sucesso da pintura?

 

R             Era um critério de êxito, sim. Era um desafio pessoal que me impus e, como disse, era uma das regras do jogo. Enfim, da Bienal até os dias atuais, talvez essas sejam as pinturas que mais se aproximem de um risco de virtuosismo, não sei. Tive uma vaga impressão de que algumas pessoas viram assim. Quero crer que elas não se limitam a isso. Acho que esse jogo entre a ilusão e a massa de tinta, entre uma imagem transparente e uma interdição massuda, é suficientemente explícita ali. Então, acho que escapo do virtuosismo estéril, ou coisa que o valha.

 

T             Nessas pinturas, você trata de questões específicas da paisagem. Discute as passagens tonais, a luz, a relação do céu com o horizonte, pontos de vista aéreos. São questões específicas de gênero. Quando você saiu à cata das imagens, procurou encontrar essas questões compositivas?

 

R             Eu já fui um pouco com isso na cabeça durante a colheita das imagens. Encasquetei que queria fazer uma paisagem de inverno, de neve. Era uma situação propícia para o meu trabalho. A neve acumulada se presta quase que mimeticamente a ser usada como tema da minha pintura, por causa da camada de tinta, da espessura. E, fora isso, digamos assim: uma paisagem de neve tem uma dominação de um tom, do branco ou do azulado. A profundidade fica toda lei- tosa, do modo como eu trato a tinta.

Conscientemente, eu mobilizava convenções da história da arte. Havia visto, há pouco tempo, [Pieter] Bruegel exaustivamente, por exemplo. Então, tanto as vistas panorâmicas quanto as paisagens de inverno foram estimuladas pelo mergulho na pintura do Bruegel.

A consciência do gênero é assumida. A adesão a um gênero muito estabelecido na história da arte e às suas

 

regras, a adoção de convenções, tornava a pintura impessoal. Existe uma banalidade vinda do excesso de convenção. Essas pinturas são, de certa forma, antissubjetivas e antiexpressivas. Busco certa objetividade, eu diria, exagerando um pouco, uma coisa antiegoica.

 

T             E algumas podem até se aproximar de formas acadêmicas, por exemplo. As paisagens correm esse risco, não? Existe o perigo de a pintura se identificar tanto com a convenção que deixa de ser outra coisa. O que você fez para a convenção não engolir a obra de arte? Para ela não se tornar só uma versão regurgitada da convenção?

 

R             Num primeiro instante, a pintura quase é engolida pela convenção mesmo, mas depois ela toma distância. Confio na estranheza que o meu procedimento traz à imagem. Na verdade, eu busco na proximidade com a convenção, paradoxalmente, uma originalidade. Se eu consigo, são outros quinhentos. Mas é parecido com o que fiz no bar, nas pinturas abstratas. Aquelas pinturas abstratas também ficavam próximas de não serem nada. Cair na convenção é um jeito diferente de não ser nada. Existe algo próprio da arte contemporânea ali, a proximidade com o não artístico. No livro O espaço moderno,6 o Alberto Tassinari fala da relação da obra com o mundo comum. De seu atuar no limiar dos dois mundos, o da obra e o do mundo comum, do dia a dia. Acho que, no caso dessas paisagens, o mundo comum também está no lado da convenção, não apenas na massa concreta de tinta.

A proximidade com os clichês da pintura, em suma, é um risco que assumo para criar tensão, assim como, de modo diferente, assumia no Lanches Alvorada. Naquela situação, o bar podia engolir a pintura. Agora, é a convenção que pode engolir a pintura. Mas é nesse lugar da dúvida que quero situar o trabalho. Por um momento, as pinturas devem criar até mesmo uma suspeição. Essas situações extremas de risco sempre me interessaram. Eu gosto da ideia de algo parecer banal e, ao ser olhado com mais atenção, ser possível perceber quanto a convenção é deslocada. O risco constante de cair numa banalidade ou num convencionalismo é o que torna o trabalho mais emocionante. Pintura e arte sem risco é sem graça.

 

T             São trabalhos pequenos, você acha que lidava com eles de modo diferente, por exemplo, das paisagens colossais, que tinham a escala de uma projeção de cinema?

 

R             Nas Pinturas de estrada, havia a vontade de resgatar uma relação mais intimista com a pintura. Um pouco antes cheguei a fazer umas naturezas-mortas de observação que não entraram na exposição. Só que as pinturas de estrada não têm intimidade nenhuma, são pura exterioridade, como é uma tendência natural do meu trabalho, mas, pelo menos, o pequeno formato tinha o sentido de valorizar a série. O tamanho também possibilitou e reforçou as variações de procedimento. E como as pinturas se aproximaram muito mais de imagens naturalistas e banais, a presença das massas de tinta entrava mais como uma surpresa. Além disso, é bem importante o fato de que a espessura das massas de cor em relação ao tamanho das telas é mais extrema.

 

T             Mas você acha que a escolha de telas menores guarda alguma relação com a pintura de cavalete?

 

R             Talvez tenha; não tinha pensado, mas talvez tenha. Elas partem das pinturas de observação que eu fazia no cavalete, por puro prazer, na fase abstrata. Embora o fato de, nesse caso, eu partir de uma fotografia cause uma mudança enorme. Aliás, uma observação à parte: aquele desejo de trazer para o corpo da minha obra aquele puro prazer de pintar, das paisagens de observação, deu errado, em certo sentido, pois esse procedimento todo que eu uso é muito trabalhoso, e não tem nada de aprazível no ato de pintar.

 

T             Que tipo de pintura você associava a essas? Porque elas têm uma espessura que lembra o pitoresco da pintura inglesa, não acha? Tem muito também da pintura holandesa do século XVII.

R             O que eu tinha em mente era a pintura holandesa do século XVII. Mais do que tudo: [Jacob van] Ruisdael, [Meindert] Hobbema, muito [Johannes] Vermeer. Também pensei muito na pintura do século XIX, Corot, Courbet e, sim, o [John] Constable, um dos meus prediletos desde a adolescência.

 

T             Nas Pinturas do mundo que flui você trabalhou com imagens dos outros?

 

R             Foi. Exatamente. No caso, filmes e vídeos da internet. Pinturas do mundo que flui é a tradução de Ukiyo-ê.7 Essas xilogravuras japonesas tinham um gosto pela vida cotidiana, pelos passeios. Tudo bem, eles tinham lá suas séries de fantasmas, monstros, maremotos e ventanias, mas basicamente quando você vê aqueles trabalhos, salta aos olhos o que há de pitoresco. E também revela um gosto por pintar e desenhar a água (a tradução mais comum para Ukiyo-ê é “pinturas do mundo flutuante”),8 o que é muito natural para o povo de uma ilha. Para mim existe também essa atração pelo líquido, mas, além disso, a fluência significa o uso de imagens provenientes de fatos do mundo: tsunami no Japão, bombardeio na Líbia; bem como das cenas provenientes de filmes, que são imagens “que fluem”, e também de situações cotidianas, como gente tomando banho num lago [pp. 112-113] ou gente andando numa rua qualquer [pp. 108-109]. Essas, aliás, são as únicas pinturas com personagens em toda essa série figurativa.

Trabalhei com imagens retiradas do noticiário e de outras publicações. Convidado a fazer um ensaio visual para a Revista novos estudos – Cebrap,9 trabalhei em estênceis que copiavam graficamente algumas cenas quentes do noticiário da época. Havia reunião presidencial, retrato do Gaddafi e imagens mais prosaicas de lojas e oficinas mecânicas, banhistas e insetos. Foi essa série que abriu a porteira das imagens alheias.

 

T             Também pertencem ao Mundo que flui as cenas de filmes que você pintou. Quais foram os filmes?

 

R             Solaris, do [Andrei] Tarkovski, Lolita, do [Stanley] Kubrick,

Psicose, do [Alfred] Hitchcock, e outra de estrada brasileira, do Céu de Suely, do Karim Aïnouz. Eu pintei quatro filmes. Paisagens vazias dos filmes. Um pântano preto e branco do Psicose,56 aquele lago do Solaris, uma estrada que morre na neblina do Lolita e uma estrada ao pôr do sol do Céu de Suely [p. 97].

São pinturas com um colorido de televisão, de cinema. A cena de Psicose é em preto e branco. São pinturas mais monocromáticas. Embora tenha seguido um caminho muito diferente, esses trabalhos prenunciam alguns aspectos do que venho fazendo agora.

 

T             A insistência nos gêneros, de maneira geral, e da paisagem, de maneira específica, perpassam toda a sua produção recente. Você acha curioso que isso apareça em um artista que, como você disse antes, tem prazer pela descoberta?

R             Curioso, mesmo… Olha, trata-se de dois aspectos diferentes, mas complementares. Um é estético, diz respeito a usar as convenções como motivo para as pinturas. Eu diria que minha pintura se estrutura mesmo no embate com a matéria pictórica e também no embate com as convenções pictóricas. Preciso tanto da materialidade quanto das convenções para criar meu jogo. Assim, o meu prazer pela descoberta está em inventar uma nova fórmula que me permita fazer novas pinturas. Muitas pinturas. Foi assim nos blocos de cor de 1999, e foi assim agora em 2009 com as pinturas fotográficas e matéricas. Trata-se de criar um pequeno sistema que me proporcione situações propícias para esses embates, e a originalidade do meu trabalho existe, se existe, quando esses embates aparecem.

O outro aspecto é biográfico mesmo, pois na minha infância o ambiente em casa era revolucionário, meus pais eram guerrilheiros, foram presos políticos. O horizonte revolucionário era altamente inflamado na minha imaginação infantojuvenil. O lado heróico da revolução. Acredito que parte do meu otimismo vem daí.

Mas para onde esse fulgor se desenvolveu em meu trabalho? O que faço tem espírito crítico, busca a originalidade, mas não é revolucionário. Pinto paisagem! E aí, lendo o livro Retrato calado, do Roberto Salinas,10 que era amigo dos meus pais, li: “Quem se submete à tirania da paisagem é um reacionário. Ele admira o pôr do sol.” E eu, nascido num ninho revolucionário, pintor de paisagens, fiquei meio mordido, mas logo pensei que, ainda que minha pintura tenha um lado, sim, contemplativo, ela não se submete à paisagem coisa nenhuma. Minha pintura intervém radicalmente na paisagem com meu procedimento, meu gesto e a materialidade da tinta. Além disso, estou certo de que essa pintura recusa quaisquer designações utilitárias, até a do historicismo da arte. Aqueles impulsos heroicos arcaicos ganharam em mim um contorno radicalmente individualista de pintor, e as estruturas de poder que combato são as do narcisismo, são as do meu próprio psiquismo.

Estou mil vezes mais para Freud do que para Marx…

 

T             Nas pinturas mais recentes, você parece trabalhar com cenas menos ilusionistas, seja nas bicromias, seja nas Ondas, seja na Chegada do tsunami.

 

R             Na verdade, agora o trabalho abriu mais do que uma frente. Os caminhos são próximos, mas correm em paralelo.

 

T             Mas têm muito em comum. Em relação às pinturas mais fotográficas, o procedimento da cor se alterou. Aquela fidelidade à imagem não é mais a mesma.

 

R             Sim, explicitamente.

 

T             Como isso aconteceu?

 

R             Primeiro, no começo das Pinturas de estrada, mexendo com as cores de uma pintura tonal, eu percebia nelas um potencial de cor que não se realizava nas pinturas realistas. Senti saudades das minhas pinturas abstratas. Tive vontade de explicitar isso, e fiz de novo pinturas abstratas com as cores com que trabalhava nas figurativas. Depois, mais recentemente, fiz gravuras em metal também abstratas variando muito de cor, fiz também gravuras realistas usando a cor de uma forma mais explícita. As bicromias surgiram dessas movimentações, e de quando vi fotografias em exposições que pareciam propícias para o meu trabalho.

Primeiro, eu vi algumas fotos de bosque do Don McCullin, e pintei a partir delas. Era um prato cheio. As fotografias em preto e branco já eram pensadas de modo pictórico. No caso do Don McCullin, muito das convenções do Constable da paisagem pitoresca, estava lá.

Havia na própria fotografia um chamado à pintura. Pensava em uma pequena série em preto e branco. No meio do caminho aconteceu a crise com a cor. Daí, tive a ideia de pintar não com o preto e branco das imagens, mas com outras cores; uma fazendo o papel do branco e a outra do preto. A ideia veio pronta: verde-escuro sobre azul-claro [p. 164], que, aliás, é uma combinação do Volpi. Era uma coisa arraigada da minha cultura cromática.

As primeiras pinturas deram muito certo. Abriu-se um novo caminho para mim. Me fizeram pensar em efeitos gráficos meio antigos, como duotone e solarização. Pensei também nos silkscreens do Warhol e fui rever as cadeiras elétricas, e até usei uma ou outra combinação de cores dele, só que minha pintura é bem diferente, ela tem um princípio de impregnação. As cores têm de se misturar, se impregnar uma da outra… Mas, enfim, era quase uma pintura em alto-contraste, mas com passagens tonais. A massa respeita o corte seco do estêncil, mas entre as manchas recortadas e o resto da imagem havia um setor que era de meio-tom, onde as cores se misturavam.

Eu tinha que manter o claro-escuro para que a pintura se mantivesse estruturada como imagem reconhecível, mas a fórmula permitia que eu usasse, a rigor, qualquer cor. E eu experimentei cinza sobre rosa, laranja sobre cor de pele, preto sobre roxo, azul-cobalto sobre bege, preto sobre cinza-azulado, enfim, muitas cores. Na onda feita com amarelo sobre cinza-claro [pp. 154-155], o claro-escuro fica no limite. Quem faz o papel do preto é o amarelo e o papel de branco é um cinza-claro. A estruturação da imagem está sempre por um triz.

 

T             Elas quase caem em uma abstração, a imagem quase desaparece. Está nesse limiar de deixar de ser imagem.

 

R             Eu gosto dessa proximidade entre mancha e imagem, mas essa pintura não pode se tornar abstração. Ela se estrutura na dicotomia entre a ilusão e a massa de tinta, é uma zona fronteiriça. Mas essas pinturas não têm mais as mesmas regras estabelecidas pela minha pintura desde Matéria noturna.

 

T             É mesmo, a ilusão, aqui, diferente de nas outras pinturas, não presta contas à verossimilhança fotográfica. Não há necessidade de realismo nessas pinturas novas. Não só nas Bicromias, mas na Chegada do tsunami também não, nas imagens de bosque, ou ruína, também não.

 

R             A ilusão fotográfica sai do centro da cena. Agora, é necessário que se mantenha em algum grau a sensação de profundidade e de atmosfera. Mesmo que não sejam tão ilusionistas, quando você configura na mente que é uma onda, que é um bosque, aquilo traz em si a virtualidade que a aproxima dos trabalhos mais ilusionistas. A tensão é parte do jogo. Ele precisa se manter.

 

T             Agora, o lado temático desses trabalhos faz pensar. O modo de pintar parece mais narrativo, assim como os motivos escolhidos. Há algo mais bruto no uso da tinta, mais corrosivo no uso da cor. Muito diz respeito à dissolução. É a paisagem se craquelando diante da queda da árvore morta [pp. 178- 181], a onda a desfazer uma forma, se tornando espuma [pp. 146-151], o tsunami [pp. 140-143]. Há algo de destrutivo nesse novo modo de pintar?

 

R             Em certo sentido, sim. O tema do tsunami entrou porque sua natureza se parece com a da minha pintura, seja nas vistas aéreas do tsunami, seja na Chegada do tsunami, que é quando uma camada de água vai cobrindo o asfalto. Agora, é evidente que uma vez escolhidos os temas, os sentidos literários vêm junto. É um tema forte, envolve uma série de conotações escatológicas: uma onda destruidora, uma árvore morta, a chegada do tsunami, que vem anunciar uma tragédia de proporções apocalípticas.

Eu me interessei pelo tsunami, primeiro, por conta do fato propriamente dito, nada a ver com pintura. Passei noites vendo aqueles filmes. Era uma coisa que me causava uma forma estranha de euforia. Algo semelhante aconteceu com o atentado de 11 de setembro. As imagens daquelas torres caindo, espetacularmente trágicas, traziam uma euforia perturbadora, escatológica mesmo. Mas ali não havia nada que me inspirasse pintura, diferentemente do tsunami, em que a camada de água cobrindo a superfície da cidade servia mimeticamente à minha pintura. Havia um interesse pessoal pelo tema em si, mas o que me faz tentar usá-lo na pintura foi uma ideia pictórica mesmo. Além disso, me vali, mais uma vez, da vista aérea das pinturas de Bruegel.

Isso serve para a Chegada do tsunami. Com os outros trabalhos foi diferente. A onda quebrando veio explicitamente do Courbet. Eu vi uma pintura de onda do Courbet no Thyssen-Bornemisza, em Madri, e fiquei com vontade de repintá-la. Do mesmo modo que refiz os trabalhos do Ranchinho. A ideia era replicar o Courbet com a minha pintura. Projetar a imagem e fazer uma coisa em cima. Usar as mesmas cores, com a minha técnica.

Cheguei a encomendar uma tela do mesmo tamanho para pintar essa versão, mas acabei não fazendo. Depois, quando eu me preparava para a Chegada do tsunami, revi os print screens que eu havia reservado e achei fotografias de umas ondas. Tive a ideia de satisfazer o desejo despertado pela pintura do Courbet usando a onda do tsunami, e tornando, assim, a ideia mais atual.

 

T             O tema da onda te ganhou. Você desdobrou em várias pinturas, inclusive inserindo o tema na série das Bicromias.

 

R             Folheando um livro do Daido Moriyama, Labyrinth,11 só com páginas de contatos, vi umas fotos de onda batendo no rochedo. Assim como as fotos do McCullin se referiam a pinturas inglesas, essa se referia ao Courbet. De novo! Além disso, o tema é um clássico da pintura romântica que se tornou banal, mais um que foi parar na feira da Praça da República. Só que as imagens em preto e branco se prestavam, imaginei, para as bicromias, para experiências variadas de cor, assim como eu já tinha feito com os bosques do McCullin.

 

T             Pensando de novo a relação entre tema e forma, no tema você já tratava, em algumas pinturas, de situações naturais mais hostis.

 

R             Na verdade, isso vem de antes. Em Matéria noturna já havia um pouco dessa dimensão mal-assombrada. Eu lidava, por exemplo, com o que há de ameaçador na noite. Depois pintei catástrofes como tema em alguns trabalhos da série Pinturas do mundo que flui. E agora esse aspecto tornou-se mais explícito, mesmo, tanto nos tsunamis quanto nos bosques.

E mais uma vez encontrei na história da arte pinturas que iam ao encontro dessas inclinações. Por exemplo, as paisagens que aparecem na pintura do Lucas Cranach que vi bastante em Berlim e Viena, sugerem essa relação com a natureza. No trabalho dos artistas do Renascimento alemão, aliás, não só a paisagem é hostil, como também o corpo humano, os corpos femininos são meio alienígenas. É uma sensualidade mesclada com algo monstruoso. O fato é que eu me vi bastante fascinado por paisagens dos fundos do Cranach, e, depois, pelo trabalho de um artista de outra época, o Caspar David Friedrich.

 

T             Você tem algum interesse pelo imaginário romântico? Sua pintura, embora incuravelmente otimista, por vezes se volta para uma ideia de ruína, inclusive para o tema da ruína propriamente dita.

 

R             É verdade. O tema de ruínas é romântico por excelência, não? Sugere um abandono que inspira sentimentos de melancolia muito sedutores. O Caspar David Friederich explora isso maravilhosamente. Ruínas falam de mundos que não existem mais, que só existem na imaginação, na idealização de uma era de ouro. As pinturas de [Nicolas] Poussin e de Claude Lorrain falam desse lugar ideal, da saudade de um mundo que foi destruído, o que também traz uma dimensão trágica. Além disso, pictoricamente falando, a ruína é um tema bastante plástico e manipulável, ultrapitoresco.

Fiz agora duas pinturas bem grandes com ruínas, baseadas em fotos que fiz na Chapada Diamantina. Aqueles acúmulos de pedras mal-ordenadas no meio do mato são muito propícios para pinturas em geral, e para a minha pintura em particular.

Na verdade, o tema me seduz desde os anos 1980. O outdoor que fiz para o Arte na rua II, mesmo, é uma ponte de pedra em ruínas. Além disso, naquela época, fiz umas pinturas pequenas com tema de filmes da Segunda Guerra e corpos mutilados, e, em 2003, fiz duas pinturas gigantes para o cenário do show do Nando Reis com as ruínas do Afeganistão. Pensando bem, as pontes de pedra que pintei recentemente também são ruínas, estão abandonadas na paisagem, sem uso… Acho que o abandono é um ponto de atração para mim, como os móveis do Goeldi no meio da rua, que eu usei em várias pinturas nos anos 1990.

 

No fim do ano passado, fiz duas pinturas de ruínas romanas, baseadas em fotos feitas no Fórum e no Palatino, igual ao Corot. Mais recentemente, pintei uma escultura de mármore de um sarcófago romano [pp. 144-145], fiz cabeças de mármore da Notre-Dame, enfim, algumas pinturas que vêm explicitamente desse tema, se bem que, nesses casos, acho que é diferente do que fiz com o tsunami. As ruínas romanas no meu trabalho são história — ou a-históricas, não catástrofe. O sentido é outro, aponta para uma atemporalidade, para um lugar nenhum.

 

T             De relíquia, né?

 

R             Uma relíquia. E o tsunami, não. O tsunami é pura destruição.

 

T             Algumas pinturas recentes são mais gestuais, como se o peso da matéria também se mostrasse como peso de trabalho. A força está também no procedimento?

 

R             Sem dúvida, a pintura é “cosa mentale”. Mas a experiência física na realização dos meus trabalhos é intensa. Sinto dores musculares, exaustão. A Onda do tsunami [pp. 146- 149], por exemplo, precisou ser praticamente refeita, depois de supostamente pronta, e a mudança de cor envolvia, por exemplo, a remoção e a mistura de cinquenta litros de tinta. Foi exasperante! Exige paciência, resignação, aceitação das propriedades da matéria. E isso é feito sem que eu saiba, ainda, se o trabalho faz sentido ou não. Digo isso sem demagogia, sem qualquer elucubração. Digo apenas quanto à decisão tomada, se foi a certa… A dúvida coloca um peso a mais nos cinquenta litros de tinta.

Penso também que o jogo que criei beira o absurdo, pois trata-se de fazer pinturas ilusionistas em condições adversas para tal, com uma materialidade que dificulta a tarefa… e o trabalho ganha uma dimensão hercúlea de proeza. E acho que essa proeza física, assim, dá dimensão concreta ao ato de fazer arte. Nesse sentido, me identifico com o Richard Serra. Tenho um lado hardcore que demanda sempre uma intensidade alta e de realidade indubitável que se meça fisicamente. Acho que coloco essas quantidades paradoxais de tinta nas pinturas por querer mostrar essa vontade… Minha pintura resiste às minhas ideias, resiste à minha imaginação. Minha vontade fatalmente esbarra na resistência da matéria! E se, por um lado, isso me exaspera, por outro me dá, concretamente, um princípio de realidade! Preciso me submeter ao material e muitas vezes me pergunto se vale a pena. Geralmente gosto muito do resultado, e vibro com a proeza! Mas nada está garantido. Se o que faço é grande arte ou não, sinceramente não sei, e está fora da minha alçada saber. Parafraseando Henry James: “Trabalho no escuro, dou o que tenho, faço o que posso. Minha dúvida é minha paixão, e minha paixão é o meu dever. O resto é a loucura da arte.”12

 

1 A Casa 7 foi o ateliê onde Rodrigo Andrade e outros ex-alunos de Sérgio Fingermann trabalharam juntos e definiram certas identidades estéticas nos anos 1980. Artistas como Paulo Monteiro, Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Nuno Ramos e Antonio Malta dividiram o estúdio.

2 O intelectual holandês é um dos fundadores da história cultural. Tornou-se especialmente conhecido por seus trabalhos sobre a passagem da Idade Média para o Renascimento na pintura do norte da Europa, mais especificamente sobre a tradição flamenca. Huizinga, Johan. Homo ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

3 Francis, Richard. Johns. New York: Abberville Press, 1984.

4 Exposição Velha ponte de pedra e outras pinturas, realizada em São Paulo, na Galeria Milan, em 2011.

5 Exposição Pinturas de estrada, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, em 2013.

6 Tassinari, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

7 Xilogravura japonesa desenvolvida sobretudo na segunda metade do período Edo (1603- 1868). Alguns dos artistas mais conhecidos do Ukiyo-ê são Hiroshige, Hokusai e Utamaro.

8 O artista optou pela tradução “pinturas do mundo que flui” e não pela mais comum, “pinturas do mundo flutuante”, inspirado pela tradução para o espanhol “estampas del mundo que fluye”, que aparece no livro Grabados japoneses de Gabriele Fahr-Becker. Fahr-Becker, Gabriele. Grabados japoneses. Madrid: Editora Taschen, 2007.

9 Revista novos estudos – Cebrap. São Paulo, nº 89, março de 2011.

10 Fortes, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

11 Moriyama, Daido. Labyrinth. New York: Aperture, 2012.

12 A citação foi retirada do conto autobiográfico The Middle Years (1893). No original, o texto está na primeira pessoa do plural: “We work in the dark — we do what we can — we give what we have. Our doubt is our passion and our passion is our task. The rest is the madness of art.”

 
Os direitos de reprodução dos textos presentes no livro Resistência da matéria – Rodrigo Andrade pertencem à Editora Cobogó. Nenhuma reprodução poderá ser feita sem autorização prévia.