Diante do muro, atrás do horizonte

Lorenzo Mammì

 

No final do filme O show de Truman, o protagonista descobre que seu mundo é um enorme cenário televisivo e atravessa uma tempestade (também artificial) para fugir dele. Chega num horizonte pintado sobre uma parede cujos limites não se enxerga. Associo instintivamente essa cena àquela de O planeta dos macacos, quando Charlton Heston encontra as ruínas da Estátua da Liberdade na praia. Mudados os tempos, mudam as angústias: no filme de 1968, o herói civilizador descobre que a evolução coincide com a autodestruição. Pior: que o desastre já aconteceu, a história já acabou e só resta repeti-la. Em O show de Truman, o herói constata que o mundo é aparência, que o infinito para o qual olhava é apenas um anteparo. A pequena escada e a porta pela qual Truman finalmente escapa não passam, evidentemente, de uma ilusão consolatória. Que vida poderia ter ele atrás da porta, como se seu verdadeiro eu estivesse à espera do outro lado, milagrosamente formado enquanto estava ausente? Se há algo real nessa história, é a parede pintada, único lugar de coincidência entre a imagem e a coisa. É lá que Truman se encontra: nesse ponto, nessa superfície onde a realidade irrompe — irrompe justamente ao mostrar a trama de sua ficção, ao escancarar o truque. E o truque, afinal, é feito de matéria sólida, é verdadeiro, existe.

Hal Foster dedicou um dos capítulos de O retorno do real (1996) à arte pop, particularmente a Andy Warhol. Costuma-se afirmar que as imagens mais chocantes de Andy Warhol (as cadeiras elétricas, os suicídios, os acidentes de carro, os motins raciais) são esterilizadas por procedimentos típicos da comunicação de massa, que as tornam semelhantes a todas as outras imagens: Marilyn, Coca-Cola, anúncios publicitários. Esta, pelo menos, é a intenção declarada do artista. Mas é também possível dizer o contrário: deixando emergir o horror atrás da imagem midiática, Warhol torna o anúncio publicitário semelhante à imagem do desastre, Marilyn equivalente à cadeira elétrica. Ambas as interpretações foram tentadas: uma insiste no referente e lê a arte pop como uma crítica interna à massificação do consumo de imagens; outra privilegia os procedimentos linguísticos e identifica na manipulação dos meios de comunicação de massa uma nova fronteira artística e existencial, mais democrática e livre justamente por ser mero território de troca, em que tudo e todos, por serem imagens, se equivalem. Foster tenta resolver a dicotomia mostrando que nem a ênfase sobre o referente significa necessariamente um maior engajamento, nem a redução à superfície da imagem comporta necessariamente uma impassibilidade. Introduz, para isso, baseando-se em Lacan, o conceito de imagem traumática. O traumático, segundo Lacan, é uma falha no encontro com o Real. Este não pode ser representado, por ser demasiado chocante, mas apenas repetido; e a repetição não manifesta, e sim substitui, portanto esconde o fato original. Ou melhor: aponta para ele, mas apenas como um sintoma aponta para uma doença. Nessa linha de raciocínio, a manipulação de Warhol embota a dramaticidade da imagem não por esta ser indiferente, mas por ser objeto de um investimento emotivo demasiado intenso. A repetição (na passagem da foto ao silkscreen e na serialização dos silkscreens) é defesa. O próprio Warhol se torna repetição, superfície — quase, diria eu, um silkscreen de si mesmo. A angústia, então, ou pelo menos o desconforto que a arte de Warhol proporciona, apesar de sua aparência não problemática, não estaria tanto no fato em si quanto, justamente, em seu esvaziamento. De fato, como a arte moderna é sempre reflexiva, sua obra não é apenas uma repetição, é sobre a repetição. Introduz uma dimensão crítica no próprio processo de encobrimento. Em outras palavras: Warhol é revolucionário justamente porque é alienado. Diante de sua parede, é finalmente livre. Nessa chave de leitura, talvez O show de Truman dê um passo a mais: o que estava encoberto e no final se revela não é um referente oculto, mas a própria identidade física do que é fruído como imagem.

Essa longa introdução não quer sugerir que seja possível aproveitar sem mais, para a pintura de Rodrigo Andrade, o mesmo instrumentário crítico que foi elaborado para a arte pop. Sem dúvida, as questões que seus trabalhos figurativos colocam, quanto ao estatuto da imagem, foi a arte pop quem as levantou pela primeira vez. Mas, quanto à feitura, ele descende, histórica e formalmente, da tradição do expressionismo abstrato e de sua retomada na pintura brasileira da década de 1980. Poucas produções contemporâneas, de fato, levam tão longe o ilusionismo da imagem e, ao mesmo tempo, proporcionam uma sensação tão intensa da presença física do suporte e das tintas. A questão a se colocar, então, é: Como pode se chegar a esse resultado a partir de uma pintura gestual, e não de uma poética que explora a reprodutibilidade técnica?

Já na época de sua adesão mais explícita ao neoexpressionismo, entre o fim da década de 1980 e o início da de 1990, Rodrigo produzia uma pintura espessa, viscosa, e ao mesmo tempo mais ousada e vistosa na cor, em relação a seus coetâneos. Se tivermos que indicar um precursor distante, seria Van Gogh — mas um Van Gogh que já passou pelo filtro lodoso de De Kooning. De qualquer maneira, essa tensão interna entre cor viva e matéria pesada se resolve, após um breve parêntese figurativo (incluindo uma exposição dedicada a Oswaldo Goeldi, sobre a qual será preciso voltar), nas pinturas do final da década de 1980: blocos de tinta a óleo colocados, mediante máscaras, sobre o branco da tela preparada, de maneira a formar círculos e quadriláteros de cor homogênea, dispostos sobre um fundo liso e branco. A composição é rigorosamente geométrica, quase neoplasticista, e as cores, se não sempre fundamentais, são sempre marcadas por contrastes nítidos. Vista de perto, porém, a tinta se mexe: arredonda as arestas ou as prolonga em rebarbas, afunda, cria bolhas. As oposições entre emancipação da matéria e construção da forma, casual e construída, que atravessam todo o modernismo e além, não buscam, aqui, uma conciliação — apenas uma coexistência. O quadro é matéria e forma, mas é matéria comprimida numa forma; e é forma que se impõe, arbitrariamente, sobre e contra a matéria que a pressiona.

A guinada mais recente da arte de Rodrigo Andrade deve ser entendida, a meu ver, a partir da dialética negativa dessas obras, em que o que era percebido como unitário se divide em dois e só pode ser definido, afinal, como “nem uma coisa nem outra”. Refiro-me, evidentemente, à linha de trabalho que o artista começou a mostrar na 29ª Bienal de São Paulo [pp. 18-47] e continua até hoje, com importantes oscilações. São quadros marcados pelo contraste entre a reprodução detalhista, quase fotográfica, de um espaço (geralmente uma paisagem) e a presença de blocos espessos de tinta, que denunciam a materialidade concreta do suporte e das cores e, por consequência, a presença física do quadro como objeto. O quadro é um objeto real e o espaço que nele aparece também é real, mas as duas realidades não convergem.

Defasagens entre o ilusionismo da imagem e a materialidade da superfície pictórica não são raras na pintura moderna, e em geral se dão na forma de alternativas: diante das Ninfeias de Monet, por exemplo, afastamo-nos para que as pinceladas se fundam na imagem, aproximamo-nos para que a imagem se desfaça em pinceladas. Essa duplicidade ainda sustenta a arte de Pollock e Rothko e justifica, na pintura americana da época deles, a centralidade do problema da escala. Mas nas pinturas de Rodrigo não há tal alternância. Quanto mais nos aproximamos, mais os detalhes se tornam nítidos, como numa pintura flamenga. Ao mesmo tempo, a matéria se torna mais sólida, gorda, quase pegajosa. A um palmo da superfície da tela, a paisagem ainda está lá, mas já não há ilusão de profundidade, de vazio: apenas uma substância oleosa e densa, maleável, que avoluma e afunila. A tinta não substitui a paisagem: a paisagem é a tinta. Batemos o nariz contra o horizonte.

É indicativo que os primeiros quadros desse tipo fossem todos noturnos, e um tanto inquietantes. Para justificar sua pintura em aplat, toda luz, Gauguin costumava dizer que “a sombra é o trompe-l’oeil do sol”. Invertendo o mote, poderia se dizer que, nesses trabalhos, a claridade é o trompe-l’oeil da sombra. A matéria é cega, tátil. A imagem que escavamos nela, pelos faróis do carro, pela luz de um poste, é fruto de um esforço de vontade, portanto de ordem moral. A atenção já antiga à obra de Goeldi volta, então, a ser significativa. Em Goeldi também a luz é risco, no duplo sentido do termo: sulco escavado, a próprio risco e perigo, na superfície escura da madeira.

 

Em Rodrigo como em Goeldi, a imagem que surge não é revelação súbita de uma realidade desconhecida: por ser ato moral, ela é também convenção, história. Casarios, armários, pescadores, em Goeldi; fragmentos de periferias, o asfalto da estrada, pontes de pedra, em Andrade. Restos de antigos fazeres, mas também restos de imagens antigas. O que vemos é o que nós mesmos fizemos e colocamos diante dos olhos. Não há visão virgem. O que Rodrigo Andrade acrescenta a Goeldi, deste ponto de vista, é a experiência da banalização da imagem, própria de sua geração: certos motivos (a ponte de pedra, o mar quebrando no rochedo), são tão desgastados como vulgarização do artístico, que só podem ser retomados como imagens já constituídas. É outro aspecto em que a pintura expressionista de Rodrigo converge com a pop e suas descendências. E é um ponto importante, porque gera um segundo eixo de questões: se, do ponto de vista espacial, a pintura de Rodrigo Andrade nos faz esbarrar contra o fundo sólido da imagem, do ponto de vista temporal nos proporciona a vertigem de uma superposição infindável de déjà-vu.

Os trabalhos da Bienal de 2010 e da exposição seguinte na Galeria Millan dialogavam explicitamente com a estética da fotografia-tableau dominante há uns trinta anos: frontalidade, grandes dimensões, composição aparentemente frouxa. Aos poucos, Rodrigo Andrade começa a explorar outros tipos de cegueira ou, ainda, outros encobrimentos: o branco da neve, o azul da água, ou até o brilho do sol. Sem dúvida, a identidade é mais gritante quando há certa semelhança entre a matéria do quadro e objeto da representação: a neve, por exemplo, se deposita sobre as coisas como a tinta espessa sobre uma pintura mais rala [pp. 128-129]. Em outros casos, a situação se inverte: o fundo, geralmente um céu sereno, é ralo e pintado detalhadamente, enquanto os objetos em contraluz (árvores, por exemplo) são realizados em blocos de tinta. A inversão implica a conquista de novos territórios, análises mais sutis. Se a luz, nas obras anteriores, vindo de fora do quadro, escavava a ilusão de uma imagem na matéria concreta do quadro, aqui ela, vindo do fundo da tela, projeta a matéria para fora, como uma sombra. A transição entre regiões ralas e densas da pintura agora é mediada por um dégradé em que mudanças progressivas na cor (em geral muito leves) acompanham a mudança igualmente gradual da espessura. Já não há salto e sim oscilação. A escuridão é densa por definição, a luz deveria ser impalpável e transparente. Aqui, ela se torna ao mesmo tempo espessa e diáfana, branco caiado e claridade difusa. De resto (e isso é o mais importante), é luz de pintura.

Embora sejam baseadas, de modo geral, em fotos que o próprio Rodrigo tirou, as paisagens diurnas [pp. 122-127] retomam insistentemente uma composição clássica da pintura de paisagens, sobretudo holandesa, com a estrada em diagonal que liga os diferentes planos em profundidade. Beirando o paradoxo, poderia se dizer que o esquema “paisagem”, aqui, desempenha uma função semelhante à dos esquemas gestálticos (a espiral, por exemplo) na arte construtiva: em ambos os casos, se trataria de um a priori na apreensão do mundo. A comparação, por certo, não deve ser levada demasiado adiante, mas tem sua razão de ser: o esquema paisagístico tradicional é, de certa maneira, o produto daquilo que Merleau-Ponty define como “estrutura de comportamento”. É o complemento perceptivo de um comportamento motório. Penetramos no quadro de Andrade como um holandês avançaria caminhando no espaço real, em sua época. Mas caminhar no campo já não é um comportamento costumeiro; quando muito se tornou uma diversão estética, um passeio (e então, numa fenomenologia do passeio, a analogia deveria ser invertida: avançamos no espaço como se penetrássemos com o olhar num quadro). Nossa relação padrão com o espaço é aquela, chapada, da janela do carro, da fotografia, da imagem impressa — a dos noturnos de Rodrigo. Perdida sua relação com o movimento, o esquema paisagístico diurno evidencia seu caráter de imagem, aliás, de imagem de imagem, retrato de um quadro.

Contrariamente à fase anterior, que demandava uma escala avantajada, os melhores trabalhos dessa série são, a meu ver, os de pequena dimensão: não apenas por ficarem mais próximos, no formato, a seus modelos seiscentistas; mas também porque, em extensões maiores, a dialética entre matéria e representação periga se tornar muito gestual, dramática, enquanto em telas mais reduzidas é uma vibração contínua, como uma cicatriz na superfície da imagem, que impede, mas de leve, que ela se torne exclusivamente óptica. Não mais a presença oprimente de uma massa em que a visão deveria escavar seu lugar, mas uma espécie de duplicação pastosa da impressão retiniana, em que a visão se atola.

Essa linha de pesquisa é levada adiante nas Bicromias [pp. 152- 173], em que Rodrigo utiliza apenas duas cores próximas, ou até dois tons da mesma cor. Uma mesma imagem pode ser trabalhada em cores diferentes, gerando uma série. O pintor, então, já não imita a representação em si (derivada que seja de uma pintura ou de uma foto), mas um seu tratamento gráfico possível, que costuma ser realizado por máquinas.

Tomemos, por exemplo, uma imagem que gerou uma série bastante extensa: uma imagem que deriva de uma paisagem de Don McCullin, fotógrafo inglês mais conhecido por suas reportagens de guerra, mas que, aqui, se inspirou evidentemente na pintura inglesa do século XVIII e início do XIX: o riacho ziguezagueando rumo ao fundo, o caminho de terra que o ladeia, interrompido por uma cancela, a árvore de galhos abertos, em posição quase central, estampada contra o céu — enfim: todo o repertório da estética do pitoresco, mais uma ideia de paisagem do que uma paisagem real. Reduzida a duas cores, a composição acentua ainda mais sua vocação decorativa. O jogo especialmente extenso de remissões, numa corrente contínua que vai dos primórdios da arte moderna até os procedimentos de reprodução gráfica, parece afastar definitivamente qualquer referente. No entanto, a paisagem existiu, foi fotografada. E o quadro existe, não se resolve numa superposição anódina de procedimentos e convenções. Cada dupla de cores reage diferentemente à luz, e obriga a variar os tratamentos: ora pinceladas curtas e sólidas, ora movimentos mais amplos; tinta ora mais grossa, ora mais diluída. Justamente nessas séries, em que Rodrigo mais se aproxima de uma atitude pop (pense-se, por exemplo, nas Sombras de Warhol), reafirma-se com mais clareza sua filiação a uma tradição pictórica onde é o gesto que determina o significado.

Outra série de Bicromias é baseada em uma foto de Daido Moriyama: um mar revolto. Rodrigo já utilizará uma vez uma imagem de Moriyama (uma rua de Tokyo) [p. 44] e, naquela ocasião, a transição da estampa à pintura evidenciará algo que na fotografia permanecia implícito: a relação do uso peculiar que Moriyama faz do branco e preto com a pintura em nanquim e a gravura em madeira da tradição japonesa. Aqui, a memória que aflora é outra, estivesse ou não nas intenções do fotógrafo: as marinhas de Courbet.

Courbet é quase uma passagem obrigatória para a pesquisa que Rodrigo Andrade está conduzindo. Não há luz nas telas de Courbet, quase não há ar; só pintava o que é sólido. O próprio céu é sempre encoberto por nuvens espessas. A matéria do quadro e a materialidade do mundo se superpõem ponto por ponto, até quase coincidirem. E essa busca da coincidência perfeita coloca, pela primeira vez talvez em termos modernos, o problema da escala. Os quadros de Courbet são grandes, mesmo quando o assunto e a composição sugeriria uma pintura de gênero, porque eles pretendem ser não ape- nas representações, mas equivalentes do mundo. As marinhas de Rodrigo (via Moriyama) [pp. 152-159], como também os bosques fechados, todos trabalhos recentes, remetem evidentemente a Courbet. E, não por acaso, as grandes dimensões voltam a ser abordadas, aqui, de maneira bastante convincente. Amplia as marinhas, e os bosques, caracterizados por uma visão aproximada e uma figuração intrincada, voltam a propor a atmosfera claustrofóbica dos primeiros noturnos. Mas com novidades importantes.

Uma tela, em particular, mostra uma árvore caída sobre um charco que deságua na borda inferior do quadro. A situação sugere um leque bastante variado de tratamentos: a água do charco é tinta diluída e lamacenta; as pedras que emergem dele são traçadas por pinceladas sumárias e densas; o tronco da árvore é mais detalhado e, entre os galhos, emerge a escuridão dos blocos de tinta negra lisa. A matéria cega dos noturnos, aqui, é fendida pela rede dos galhos secos, como se tivesse rachado, algo semelhante aos Cretti (craquelés) de Alberto Burri. Não é das menores qualidades desse trabalho o fato de estabelecer uma relação, ainda que talvez não proposital, entre dois pensadores fundamentais da relação entre forma e matéria bruta: Burri e Courbet. E é importante que tais alusões não sejam (ou pelo menos não se apresentem como) propositais, mas surjam naturalmente pelo esforço contínuo de estabelecer analogias entre a matéria da representação e a matéria da coisa representada.

Há um último trabalho que julgo valer a pena lembrar, nessa linha de raciocínio: reproduz uma imagem do tsunami [pp. 140-143], no momento em que um primeiro véu de água penetra entre prédios, antes da grande onda. Rodrigo escolheu um ponto de vista alto, em que apenas as bases dos prédios são visíveis. A curva que o chão descreve entre a borda inferior do quadro e a perspectiva progressivamente mais acentuada do fundo contrasta com as linhas verticais que a luz zenital marca na água por faixa de luz e sombra — a mais acentuada e pesada à direita, correspondendo à sombra do prédio mais próximo.

É óbvio que sabermos de que se trata acrescenta urgência à pintura: do jeito ainda manso em que a água se alastra, poderia ser o estouro de um cano da Sabesp. Mas a própria imagem inunda, a tinta é uma enchente. Longe de ser uma massa inerte na qual é preciso escavar uma imagem, ela, agora, é o próprio acontecimento. O olhar que penetraria em profundidade é obstruído pela planaridade de sua massa, a impenetrabilidade de seus reflexos. Acima destes, ainda há traços ondulados que sugerem a direção da corrente — não o mar revolto de Courbet, mas, agigantados, os encrespamentos superficiais dos impressionistas. Sabemos quanto a representação da água foi importante para o surgimento da pintura moderna. Mas ela, como tudo o mais, já não pode ser objeto de contemplação serena (La Grénouillière…), apenas de apreensão imediata, assustada. O instantâneo é a forma atual da percepção, e é inclusive por aí que a fotografia contamina a pintura.

O que impede a pintura de Rodrigo se tornar um jogo citacionista de cartas marcadas é que não há, aqui, como na pop ou no hiper-realismo, uma técnica onicompreensiva que torne todas as imagens equivalentes; também não há, como em muita pintura recente (Tuymans seria o melhor exemplo), uma atitude subjetivista que transforma a pintura numa espécie de memória pessoal da imagem e recobre toda figura de uma pátina afetiva. A pintura de Rodrigo busca uma relação objetiva com as coisas, mesmo que as coisas sejam, afinal, outras imagens. A realidade do que vemos não está nem no referente, que é ele também uma representação, nem no signo que, por material que seja, só existe enquanto remete a outra coisa (outro signo). Está no esforço continuado de estabelecer relações convincentes (ou seja, não meramente convencionais) entre um e outro. É uma ação finalizada, ou seja, um fazer — não apenas um procedimento, que implicaria a repetição de um padrão. É nesse sentido, me parece, que a pintura de Rodrigo Andrade, mesmo nessa fase figurativa, deve ser lida na linhagem da action painting.
 
Lorenzo Mammì é crítico de arte e professor de filosofia na Universidade de São Paulo (USP).

 

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