Convenção, ilusão, dissolução

Tiago Mesquita

 

Maneira negra

Existe um tipo de escuridão que não se vê muito nas grandes cidades, nem mesmo em um blecaute. Ela foi íntima dos nossos antepassados e continua a limitar a visão das pessoas em alguns lugares do campo e da floresta. É como se houvesse entre nós a treva na qual vivem os peixes das fossas abissais, a quilômetros de profundidade da superfície, onde nenhum raio de luz chega.

Depois que o sol se põe, enxerga-se até certo ponto, e todo o resto é encoberto. Esse negrume não é a camada cinza que de noite paira sobre todos os objetos do mundo. É treva. Algo mais sólido, que interrompe o olhar. É dia de céu fechado e lua nova. Enxergamos alguns palmos à frente, depois nada se apresenta. As diferenças entre o chão e o céu desaparecem, o negrume torna tudo indistinto. A ausência de referências visuais é tamanha, que daria para acreditar que o mundo, depois da escuridão, não está mais ali. Já não se enxerga sombra ou atmosfera, o breu cobre todo o resto.

Não é por acaso que Dante Alighieri vai descrever a perdição da alma, sua confusão, distante da via direta, da via verdadeira, como uma queda em uma selva escura tenebrosa.¹ Lá é um lugar sombrio, que só o distancia dos caminhos da correção. Ali não sobra nada, ele está perdido, acompanhado de desespero, medo e confusão. Essa selva escura é a primeira paisagem narrada pelo poeta ao começar a sua jornada épica em direção ao inferno. O que parece haver depois da escuridão da mata é o limbo.

 

Metáfora e gênero

Em 2010, Rodrigo Andrade mostrou pela primeira vez, na 29ª Bienal de São Paulo, um conjunto de pinturas negras e carregadas de matéria. A série ganhou o nome de Matéria noturna [pp. 18-47]. O artista colocou, ao lado de dois quadros abstratos, pinturas figurativas feitas a partir de imagens noturnas que mostram seis paisagens, além de um interior — inspirado na imagem do seu ateliê — e uma pintura chamada Grade [pp. 38-39]. Essa última não é uma ampla vista do ar livre, não está dentro de lugar nenhum, figura apenas um beco. Noite e negro dão a ver um espaço misterioso, insondável, e quiçá assustador (se nos deixarmos tomar por uma leve dose de paranoia).

Todas as pinturas figurativas de Matéria noturna foram feitas a partir de fotografias capturadas por Andrade. A fotografia atuou aqui como uma mediação entre o artista e o mundo visível. Não se trata da pintura de uma vista qualquer, mas da pintura de uma imagem previamente ordenada daquela vista. Assim, o artista recriava não a natureza, mas uma outra figuração. No processo de criação do quadro, entretanto, Andrade enfatizou a discrepância entre a imagem de origem fotográfica e a matéria empregada para pintá-la. Utilizou, para isso, muita tinta. Com essa carga de preto, a massa avançava alguns centímetros para além da superfície do quadro.

As figuras são feitas com pinceladas visíveis, mas discretas, e mais sutis que a sua pintura figurativa dos anos 1990, por exemplo. É um modo frio de se aplicar a tinta. Andrade fez o máximo para anular qualquer índice de expressividade. Era um pintor tentando ser o mais fiel possível ao registro da luz feito pela foto. Um artista em busca da anulação de qualquer estilo individual. As obras pintadas são geometrizadas, gráficas. Os espaços e as figuras são desenhados com traços secos e passagens diretas. As linhas que separam o que é sólido do que é atmosfera são determinadas. A pintura tenta ser mais uma derivação da imagem sem gesto da fotografia, do que procura soluções que possam atribuir personalidade individual ao trabalho. São imagens genéricas, e o modo de pintar procura explicitar esse aspecto pouco singular das obras.

O contraste entre a atmosfera e os sólidos é reforçado pelas maneiras distintas de se aplicar a tinta em cada um deles. Os diferentes objetos são pintados com pincel. As pinceladas recriam com detalhe as modulações da luz. Cada planta, cada grade, cada poste são descritos com precisão gráfica e coerência tonal. Há riqueza de verdes, marrons, amarelos e acinzentados.

Depois da tela pintada, com os espaços e objetos descritos, é aplicada a massa de tinta negra. São litros de tinta distribuídos sobre a superfície e limitados por uma máscara de estêncil, que Andrade espalha e alisa com um rodo, como a colocar a tinta numa serigrafia. A massa descreve a atmosfera, o que está no intervalo entre um sólido e outro. A matéria negra que recria a escuridão é mais espessa no alto da tela e vai perdendo corpo ao chegar perto da base, até dar vez ao aparecimento das coisas que ficam sobre a terra.

A pincelada e o colorido, ainda que não cheguem a ser vaporosos, se mostram muito mais frágeis que o negro. Os elementos só aparecem, na verdade, quando a sombra o permite e se ausenta. Se tomarmos a pintura Estrada [pp. 34-35] como exemplo, notamos que o céu preto se interrompe um pouco antes da grama pintada. Esta aparece como um manto que deixa surgir as plantas em sua silhueta recortada, sem as encobrir.

No canto esquerdo da tela, o fundo sombrio se torna mais ralo e a estrada e o gramado de um acostamento anunciam-se em voz baixa, com clareza suficiente, no entanto, para que possamos enxergá-los. Do lado oposto, embaixo, quando o preto perde sua espessura, a superfície se esverdeia um pouco, ganha suaves notas de marrom, e nos permite vislumbrar o campo ao lado da estrada. Mas, à medida que se afastam do primeiro plano, em direção ao alto da pintura, as cores escurecem até se enegrecerem e se tornarem parte da massa densa, sombria e uniforme. Depois dela não existe nada. Mas se o negro veda o fundo, também transborda, e avança em direção à imagem, como se pudesse desfazer a perspectiva e engolir o espaço.

Em Grade, o preto não só vaza da estrutura gradeada do portão, como também retira a ortogonalidade do entrecruzar de arames. Uma estrutura que deveria ser retilínea por ser entalhada no preto massudo se torna estruturada, mas com linhas mais irregulares. Lembra uma pintura de Agnes Martin, mas radicaliza seu gesto. O preto, além de desfazer algo da transparência ilusória da pintura, também retira a regularidade das coisas. A escuridão é ao mesmo tempo massuda e ácida, tem peso e é ofuscante, sugerindo um caráter violento na narrativa e um aspecto tenso no modo de pintar. Matéria e imagem estão em contradição permanente. Mais que isso, a ilusão está prestes a ser desfeita pelo preto: o modo de pintá-lo ora intensifica o que a imagem tem de ilusório, ora desfaz qualquer engano e nos joga em uma materialidade cruel.

Em pinturas de 2011, como Mato em pedras com musgo [pp. 68-69] e Pequena ponte de pedra com arbusto à noite [pp. 66-67], a proporção de sombra cresce na mesma medida do contraste do preto com o colorido. É um colorido mais intenso e uma pintura de marcas mais aparentes. O preto ganha mais espessura em relação às pinturas da Bienal, evidenciando a tensão entre imagem e massa. É como se a pintura recrudescesse a sua presença para que não pudesse desaparecer e aumentasse e brilhasse mais. Essas pinturas são exemplares da poética do artista, por serem alguns dos seus melhores trabalhos.

A relação entre imagem e materialidade remete à dinâmica de O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Tal como a psique transforma Dr. Jekyll em Mr. Hyde, a matéria faz da imagem ilusória uma pintura massuda que pode colocar toda a ilusão a perder. Ela retira o que a pintura tem de estritamente obediente à imagem fotográfica e ao gênero da paisagem, assim como subverte a superfície contida da fotografia. Injeta ambiguidade no que parecia organizado, respeitável e polido. A pintura tem duas naturezas: é ilusão e combinação de materiais e pinceladas. Nesses trabalhos, uma natureza é complementar à outra, mas elas vivem às turras.

O ilusionismo é desmentido por sua sombra, numa bela metáfora da destruição da imagem pela matéria. A matéria constrói a ilusão e a coloca em frangalhos, mas não a destrói totalmente: a imagem resta como ruína. A maneira de pintar reforça ao mesmo tempo ilusionismo e anti-ilusionismo, sem eliminar nem um e nem outro. É um jogo ambíguo no qual os materiais utilizados para nos fazer enxergar a miragem são os mesmos que nos levam a perdê-la de vista. No entanto, o que traz essa ambivalência estranha à pintura não é só o seu caráter de miragem pastosa. O artista não pinta só uma narrativa, não pinta a sombra como uma força sublime da natureza ou uma diatribe anti-ilusionista (aliás, o trabalho não se coloca contra a ilusão, só a vê com ambiguidade).

Quando Andrade faz, por exemplo, uma ponte de pedra [pp. 54- 57], pinta a paisagem. Mais, pinta a pintura de paisagem, um gênero identificável, bem-constituído, reconhecível e regrado. Um modelo reiterado ao longo da história da arte que já foi refletido por séculos de tradição, problematizado, reinventado pelos modernos e, inclusive, vulgarizado em inúmeras versões diluídas das pinturas dos grandes mestres. É um tipo de pintura que, porque já possui um repertório tão grande, por vezes tem um caráter anônimo, pois poderia ser feita apenas pela apropriação de convenções de gênero, como muitas vezes o é. A operação de Andrade parte dessas mesmas convenções, mas com outras camadas de sentido. Diz respeito à relação ambígua da pintura com a ilusão, mas também ao esforço de se fazer um acontecimento artístico inusitado a partir de uma imagem banal.

 

Convenção, dissolução

Depois da Bienal de São Paulo, mais especificamente nos trabalhos expostos em 2011, na exposição Velha ponte de pedra e outras pinturas [pp. 54-87], a relação com os gêneros se torna mais evidente. Enquanto nas pinturas anteriores foram utilizadas fotografias de lugares afetivamente importantes para o pintor, feitas sem a ambição de serem transformadas em tema de obras de arte, no ano em questão o artista escolheu o que fotografaria já pensando na pintura que poderia ser produzida a partir da imagem capturada. Antes de qualquer clique, já vislumbrava a tela que sairia de uma paisagem, uma fachada, um interior registrados pela câmera.

Para essa exposição de 2011, o olhar do fotógrafo Rodrigo Andrade buscou retratar temas manjados da pintura. Enquanto procurava a imagem certa para pintar, lembrava-se de modos clássicos de arrumar a luz, acertar a composição e arranjar as proporções. Os temas eram associados a grandes gêneros da arte, como a pintura de interiores e, sobretudo, a paisagem. Por isso, as pinturas se aproximam das linguagens da foto e, mais ainda, de formas consagradas de criação artística. Como não se lembrar da pintura de [Gustave] Courbet, ao olhar uma das marinhas de Andrade? Como não se lembrar dos cacoetes do cinema nas suas pinturas de estrada? Como não se lembrar das perspectivas de Van Gogh em algumas de suas cenas rurais, de 2013? Por fim, como não se lembrar de [Pieter] Bruegel nas suas panorâmicas?

O procedimento é quase inverso ao plein air.² Não se trata da pintura feita diretamente de olho na natureza: não há busca de efeitos inusitados, nem arranjos mais soltos e despojados. O modelo de composição estava dado de antemão, só lhe faltava uma imagem de referência. Uma imagem, de saída, muito informada pela história da arte.³ Segundo Giulio Carlo Argan, todo pintor, sempre que procura uma paisagem para pintar, procura não a natureza, mas a própria obra de arte.4 A memória histórica da arte atua quase como outra ferramenta da pintura. O artista saía para fotografar uma imagem nova, mas que remetesse a modelos de pintura reiterados. Tão repetidos que já haviam perdido sua autoria.

Rodrigo Andrade, contudo, radicaliza esse gesto. Escolhendo temas que se tornaram clichês: pontes de pedra, rochedos, perspectivas, onda a quebrar na beira da praia; assuntos comumente aproveitados pela pintura mais vulgar. Substrato que informa os pintores de fim de semana, as pinturas que encontramos em feiras de artesanato, como a da Praça da República, em São Paulo.

Theodor Adorno tem uma expressão antipática, mas engraçada, para esse tipo de arte: “assustam o desprevenido, as coisas horripilantes acumuladas na casa, pela sua semelhança com obras de arte.”5 São pinturas que se submetem totalmente ao tema, pensam os modos de pintar como os modos de se adequar às convenções mais reconhecíveis. Esses pintores reiteram esses procedimentos, de maneira mais ou menos tosca, como se eles fossem a única forma possível de se fazer arte. Por isso, esse tipo de pintura evita novas soluções visuais. É uma criação da obediência. Feita por pintores que se atêm às regras de um rescaldo de cultura acadêmica.

A relação de Rodrigo Andrade com esse tipo de arte é ambígua. Por um lado, sua obra traz a impressão de que gosta de estar próximo dessa vulgaridade. Não lhe faz mal a companhia de uma produção que procura belezas ordinárias, embora ele saiba que esses pintores trabalham em outro sistema de produção de imagem. No entanto, quando olhamos seu trabalho, ele parece sugerir o caminho oposto.

A pintura de Rodrigo não poderia ser mais diferente das “pinturas ordinárias”. Se o ponto de partida vem de formas compositivas já conhecidas, o tratamento formal não vem daí. Em primeiro lugar, porque o artista resolveu não fazer apenas a convenção, mas fazê-la a partir da fotografia, para tornar o procedimento ainda mais anônimo. Como se fizesse uma pintura de ninguém. Assim, não há o intuito de reforçar o gesto artesanal como na pintura kitsch. Depois disso, o trabalho de Andrade não se dilui nas convenções. Não é um modo competente de utilizá-las. Essas soluções repetidas são o seu ponto de partida. De lá, a pintura entra em dissonância com a matéria. O artista vira o jogo e a convenção está a se diluir.

Nessa exposição de 2011, Rodrigo partiu de algumas convenções da pintura e fez telas gigantes, que, por ocuparem a parede de cima a baixo e serem horizontais, produziam o impacto de uma tela de cinema. Embora o gesto fosse mais solto, lembrando o tratamento da pintura do século XIX, a ilusão remetia àquela produzida pela imagem fotográfica.

Estávamos diante de uma pintura de ponte de pedra — dentre inúmeras outras —, não de uma obra de arte. Tratava-se de um modo de pintar que se preocupava exclusivamente com a identificação plena com o seu referente (pior, com o seu tema). Em Rodrigo Andrade, a forma é desmentida pelo forte contraste entre a matéria resistente e a pintura ilusionista. A identidade absoluta com uma forma convencional de criar imagens era rompida de maneira brutal. O peso da matéria desmentia a ilusão e, aos poucos, as convenções se diluíam em tinta, em massa. Quando o espectador se aproxima da tela, já não consegue enxergar nada além de matéria: a ponte parece se desfazer. Na medida em que o pintor carregava o seu pesado material para a imagem, o referente perdia a importância. A identificação do tema se transforma, assim, em um lodaçal de óleo e pigmento.

Em outros trabalhos da mesma exposição de 2011, a massa de tinta mostra-se mais fragmentada. Sombras, nos intervalos entre as pedras, são mostradas como ilhas à deriva num oceano de imagem. Como o desenho do estêncil torna-se mais recortado, temos a impressão de que a imagem não é engolida pelo negro, mas está a se desgastar, quebrando-se em plaquetas de tinta.

A pintura escapa de reafirmar o pastiche, escapa de ser regida pelo gosto por “belas paisagens” e, assim, é possível criar um grau considerável de violência estética. A questão do pastiche foi muito discutida nos anos 1980 e 1990, justamente o período em que o artista começou sua carreira. A reflexão intelectual sobre o pastiche se deve muito ao uso que, antes, Theodor Adorno fez do conceito. No pastiche, segundo o filósofo, os estilos obsoletos e os gêneros calcificados da arte são retomados de um modo não parodístico, ou seja, sem nenhum distanciamento crítico em relação às obras citadas. Tratar-se-ia, então, de uma emulação de criações que já foram feitas, uma exibição técnica da capacidade do artista de fazer algo “ao modo de”.

As imagens ilusórias de Andrade, como sabemos, partem de temas tradicionais e de alguns modelos compositivos reconhecíveis, mas sua pintura não estabelece nenhuma aliança identitária com estilos do passado ou mesmo com os temas banalizados, que ignorariam outros acontecimentos posteriores da pintura. Não há adesão. Diferente da lógica de um academicismo diluído, embora a forma seja dada de antemão, o modo como matéria e cor se comportam não o é. Nas marinhas e pontes de pedra, quando prestamos atenção no tema que pretende ser o símbolo do que ele representa, a imagem parece ser consumida pela matéria.

Se tomarmos uma tela do gênero marinha exposta em 2013, no Centro Universitário Maria Antonia [pp. 114-115], essa dinâmica contraditória se revela com clareza. Mesmo que a imagem da marola a bater na areia possa ser tomada como um símbolo de placidez, não é disso que a pintura trata. A tela é tomada por uma massa de tinta azul-esverdeada, que muda o seu matiz lentamente, de baixo para cima, até ultrapassar a linha do horizonte e virar vapor. Aliás, água e vapor compartilham aqui da mesma substância, o que indica mais um grau de harmonia na composição. Sobre a massa, vemos pinceladas suaves, a sugerir o movimento do mar. Embaixo, uma pequena faixa de areia (que ocupa menos de 20% do trabalho) é feita em um bege ralo, diretamente na lona da tela. Não fosse o contraste das duas formas de aplicar a tinta, tudo indicaria uma imagem clichê, ainda que belíssima, do oceano em dia de calmaria.

Não tanto pela espessura do azul, que é mais discreto que as massas de pinturas anteriores, mas por seu contraste com o bege ralo, acinzentado, temos a impressão que a tinta da parte superior do quadro poderia desabar. A massa exerce forte pressão gravitacional no trabalho. Assim, a imagem da placidez também pode ser vista como uma imagem de catástrofe. A figuração excessivamente identificada com o tema, com ideais de pintura, no momento seguinte, parece desmontar. A imagem não aguenta o peso da tinta.

Em minha opinião, os melhores momentos dessa obra recente de Andrade acontecem quando a sugestão de corrosão da imagem se funde com o tema representado, seja pela força dos materiais, seja por sua fragmentação, seja por uma contradição aberta. Já não é possível reconhecer a ponte, a praia, a paisagem ou a fotografia de origem: só resta a dissolução.

 

Você está deitado no escuro de olhos fechados e vê a cena. Como não pôde na época.6

Acredito que esse esgarçamento, tratado por Rodrigo Andrade nas pinturas anteriores como uma tensão entre matéria dura e ilusão, apareça, em 2013 e 2014, no modo de pintar as figuras e tratar seus contornos. Desde a série Pinturas de estrada [pp. 122- 133], Rodrigo Andrade começou a lançar mão de expedientes menos rígidos para pintar a imagem. A pintura perdeu a aparência fotográfica e, aos poucos, o artista deixou a fidelidade da pintura à referência. As massas de tinta saíram do fundo da tela e se tornaram um modo de atribuir mais solidez às figuras maciças. A massa de tinta não era mais só céu e ar, era também a espessura dos objetos.

Na pintura Estrada com paisagem de neve I [p. 130], por exemplo, a massa de tinta, além de compor a luz, também atribui espessura àqueles montes gelados. Nas estradas, a brutalidade não está tanto nos temas das figuras quanto na própria tinta de que são feitas. Esse novo modo de pintar foi se tornando progressivamente mais solto. Com isso, sua pintura mais recente se reaproximou dos quadrinhos que animaram seus desenhos na adolescência e que dialogam com seu trabalho via Philip Guston e Robert Crumb desde sempre.

Faz algum tempo que o artista trabalha a partir de imagens que não foram feitas originalmente por ele. Já pintou paisagens retiradas dos filmes [pp. 94-99], de fotógrafos importantes [pp. 152-173] e de vídeos da internet [pp. 100-101]. Não deixa de ser curioso que ao usar imagens de outros, o artista crie mais dissonância em relação à imagem que o inspirou, intensificando o drama e o tom catastrófico já presentes em suas pinturas anteriores.

Esse imaginário da catástrofe ronda a pintura de Andrade há tempos. Nas pinturas negras notava-se uma alusão ao horror e certa desconfiança misteriosa. Nas pinturas da Velha ponte de pedra há uma volta a temas românticos, byronianos, que agora reaparecem sob a forma dramática de ruínas, forças incontroláveis da natureza — como as ondas e as matas fechadas pitorescas —, e desastres, como os tsunamis. O artista parece ter trazido outras regras para seu jogo de ilusão.

Por meio dessa relação menos ortodoxa da pintura com a imagem fotográfica, Rodrigo Andrade chegou às bicromias [pp. 152-173]. Pinturas que são derivadas de fotografias de ondas feitas por Daido Moriyama e bosques de Don McCullin, a partir dos quais o artista cria obras de grande contraste gráfico que não apresentam desejo de verossimilhança. Em vez de reconstruir toda a complexidade tonal dos cinzas das fotografias, Andrade diminui a quantidade de tons e troca a cor. As pinturas vêm em pares de cores, mas não em preto e branco, como nas fotos originais. Elas são feitas em azul e cinza, azul e verde, amarelo e cinza, preto e roxo, e cinza e rosa. Enquanto uma das cores compõe o fundo e alguns detalhes, a outra cor compõe as figuras. Melhor dizendo, uma cor faz silhuetas enquanto a outra dá visibilidade aos seus intervalos. Embora a mistura entre as cores e a direção da pincelada nos faça sempre perceber as figuras, a paisagem é apresentada em seu limite, quase se tornando abstração.

Esse aspecto descarnado, planar, gráfico, de uma pintura ainda impessoal, bem como o uso da bicromia, faz lembrar algumas das pinturas de Andy Warhol. No entanto, diferente de Warhol, Rodrigo Andrade não parece fazer da imagem um ícone que existe independente do que ela figure. A imagem não se mostra como um modelo imaterial, e industrialmente repetido das coisas existentes, ela sai da tela esgarçada. Assim, a pintura se torna arte, quero crer, grande arte, quando essa identidade absoluta com o referente é quebrada de maneira brusca. A experiência dessa obra de arte é uma tensão permanente.

Muito da arte contemporânea recente sofre de excesso de convicção e faz da obra veículo para os mais diferentes discursos, colocando a visualidade a serviço da afirmação de identidades ou como denúncia das injustiças escamoteadas do mundo. Nesses casos, chegamos à obra sabendo mais ou menos o que iremos encontrar. Então é tarde demais, resta pouco para olhar. Em Rodrigo Andrade acontece justamente o inverso, e é nisso que reside a qualidade da sua obra. Ao olhar a imagem, tudo que acreditávamos ter encontrado, tudo o que é definido, claro, evidente vira ruína em um piscar de olhos.
 

Tiago Mesquita é crítico e professor de História da Arte.

 

¹ Os primeiros versos do Canto I da Divina comédia de Dante Alighieri: “A meio caminhar de nossa vida/fui me encontrar em uma selva escura/estava a reta minha via perdida./Ah! Que tarefa de narrar é dura/essa selva selvagem, rude e forte/que volve o medo à mente que figura”. Em Alighieri, Dante. A divina comédia: inferno (tradução: Italo Eugenio Mauro). São Paulo, Editora 34, 1998, p. 55.

² Pintura feita ao ar livre. No século XiX, foi pensada por diferentes artistas franceses como modo de se contrapor à rigidez compositiva da pintura acadêmica.

³ Muito da fotografia contemporânea também parece operar dessa maneira. Diversos artistas procuram os modos de ordenação da arte tradicional. Pensemos, por exemplo, nos retratos de grupo de Thomas Struth e nas recriações de cenas da história da arte de Jeff Wall.

4 “Na multiplicidade e variedade infinitas dos aspectos naturais, o pintor faz uma escolha, ou seja, identifica valores que julga mais adequados para serem expressos em pintura; mas é claro que, entre eles, se destacam os que já foram expressos em pintura (…).” Argan, Giulio Carlo. “O pitoresco”. In: A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso (tradução: Lorenzo Mammì). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 113.

5Adorno, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada (tradução: Gabriel Cohn). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008, p. 222.

6 Beckett, Samuel. “Ouvido no escuro I”. In: Companhia e outros textos (tradução Ana Helena Souza). São Paulo: Editora Globo, 2012.

 
Os direitos de reprodução dos textos presentes no livro Resistência da matéria – Rodrigo Andrade pertencem à Editora Cobogó. Nenhuma reprodução poderá ser feita sem autorização prévia.