Contaminações

Taisa Palhares

 

Em 2001, Rodrigo Andrade realizou num bar em Santa Cecília um trabalho chamado Lanches Alvorada que consistia na colocação de blocos de tinta a óleo pura nas paredes do estabelecimento comercial do mesmo nome. O procedimento parecia simples e inserido coerentemente na produção que o artista vinha desenvolvendo em tela desde 1999: a aplicação, em geral em pares, de massas de tinta em formas geométricas sobre superfície branca da tela¹. Não sem certa ironia, era como se as pinturas respondessem, à questão sobre sua especificidade, de maneira concisa e sem rodeios: matéria, cor e o resultado de seus efeitos físicos (expansão, distensão, refração) sobre um anteparo neutro e nada mais além disso. E aí reside a atração: apesar de conhecermos de antemão o procedimento empregado por Rodrigo, o conjunto de quadros, criados a partir de uma regra comum, torna-se infinitamente diversificado. Nunca sabemos como as cores, por vezes tão alheias entre si, irão conviver.

Qualquer espécie de interioridade, seja espacial, seja como projeção de um outro mundo, desapareceu. Ao esvaziar a pintura de qualquer efeito ilusionístico e narrativo, a interpretação recai sobre a superfície, sobre as transferências que as matérias de cor estabelecem entre si e com o espaço do espectador. Neste sentido, Rodrigo se posiciona na esteira de uma corrente da arte contemporânea para qual o espaço da obra de arte apresenta-se como pura exterioridade. O esvaziamento simbólico decorre da trivialidade das formas escolhidas², do caráter um tanto contingente de sua localização no quadro e das trocas imediatamente perceptíveis entre as massas coloridas, em geral em contraste.

Em Lanches Alvorada o mesmo procedimento é transposto para uma escala ambiental. Mas ao fazer isso, ao se arriscar de maneira tão peremptória no espaço do mundo, o sentido da redução formal da pintura de Rodrigo Andrade parece ampliar seu horizonte de interpretação. Por isso, o trabalho, pouco comentado na época, representa, a meu ver, um momento crucial na produção do artista (e, diga-se de passagem, para a pintura contemporânea brasileira); movimento este que hoje é retomado nessas Paredes da Caixa. Em ambos os casos, o artista abandona a neutralidade e segurança da tela branca para se lançar no espaço visualmente ruidoso ora do bar ora do Museu da Caixa. As intervenções pictóricas dialogam com esses locais sem serem absorvidas.

Em Paredes da Caixa, Rodrigo Andrade resolve aplicar seus blocos de cor pura de tamanhos, formas e espessuras diferentes, em algumas das salas do museu. O ambiente é caracterizado pela reconstrução de uma agência bancária do final dos anos 1930, de decoração pomposa e austera, em tonalidades de verde e vermelho, paredes revestidas de diferentes padrões de madeira envernizada. Tudo aqui parece respirar uma outra realidade, que de certo modo vive em suspensão no sexto andar do edifício. Há índices de uma história, uma vida, que não nos pertence mais. Espalhados pelas paredes, retratos em estilo acadêmico de personalidades marcantes para história do banco, nome como Dom Pedro II, Getúlio Vargas e do jovem Paulo Maluf, e grandes estantes de livros, mapas, cartazes, mobiliário de escritório, máquinas de escrever, calculadoras e mesmo uma sala de atendimento médico.

Certamente as pinturas modificam este local congelado no tempo e são modificadas por ele. Pois são percebidas enquanto corpos estranhos, intrusos de um outro universo, mas simultaneamente encontram-se muito à vontade e naturais neste espaço. E neste jogo reside toda a potência instigante do trabalho. Para o espectador é quase impossível abstrair a peculiaridade do lugar e se concentrar “na pintura”. Quase de maneira inconsciente, o olhar é lançado às salas, no desejo de encontrar uma similaridade com a paleta de tons da tinta a óleo e suas formas retangulares. Como se uma subordinação indicial entre os elementos físicos do museu e a pintura pudesse fornecer a chave do enigma. Se por um lado esta reativa a qualidade pictórica dos objetos e dos revestimentos (que também há muito perderam seu valor de uso, para se tornarem peças de antiguidade), por outro, a relação entre os blocos de tinta mantém a autonomia, pois não se resume a seus vínculos espaciais.

Essa passagem física contínua entre dois universos, ou seja, a tentativa de fruir da cor como algo independente, experiência desvinculada do espaço circundante e, simultaneamente, a atitude incontrolável de procurar na sala outros elementos reagentes e ativadores da relação entre as massas coloridas, ampliando desta forma o campo de reverberação, revela a grande potência da intervenção de Rodrigo Andrade. Neste movimento, tanto o museu enquanto local de simbolização quanto a experiência da pintura saem enriquecidos: ambos se alimentam da permutação espaço-temporal em que se vêem confrontados, adquiridos com isso novas significações.

Não é de hoje que teóricos e artistas refletem sobre os limites da arte na contemporaneidade, a autonomia ou especificidades do fazer artístico, a natureza de sua inserção social, sua inevitável dissolução no mundo da vida etc. Como afirmou Adorno, nas primeiras linhas de Teoria Estética, “tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como na sua relação com o todo, e até mesmo o seu direito à existência”. A essa situação, Paredes da Caixa  parece pontuar que é possível sim pensar numa experiência singular que fuja às regras da vida cotidiana e lance mão de meios específicos, sem com isso abdicar de uma relação de contaminação e troca com o espaço do mundo. Ao distender os limites espaciais de sua ação, Rodrigo Andrade assume o risco. Tudo poderia resultar num puro efeito decorativo, se não acreditasse exatamente na possibilidade de diferenciação pela pintura.
 

¹ Em um primeiro momento, essa superfície poderia receber alguma cor, como cinza ou azul, funcionando como fundo, o que foi sendo pouco a pouco abandonado.

² Dificilmente vejo as pinturas de Rodrigo Andrade inseridas em uma corrente artística abstrato-geométrica.

 
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição. Rodrigo Andrade: Paredes da Caixa. São Paulo: Caixa Cultural São Paulo, 2006.